sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Os novos casais ventosos



Os novos casais ventosos
A crise provocou um aumento do consumo de drogas duras. E, com o velho hipermercado de heroína de Lisboa desmantelado, os toxicodependentes fixaram-se em novos locais. Assim nasceram novas salas de chuto a céu aberto nas Olaias e em Xabregas, em Alcântara e no Lumiar

TERESA CAMPOS
MARCOS BORGA
29.01.2017 às 8h53

Todos o conhecem como o rapaz que não usa dinheiro. Cabelo e tez escura, todo vestido de negro, é de poucas falas. Anui apenas a dizer que tem 30 anos e, denuncia-o também o sotaque, é das ilhas açorianas. Quando se cruza com Sofia, técnica da Ares do Pinhal, uma associação que ajuda toxicodependentes desde o ano em que ele nasceu, Luís, chamemos-lhe assim, repara logo que ela traz um contentor para recolha de seringas usadas. “Esperem”, pede, escusando-se para ir buscar as que guarda à cabeceira, na casa improvisada em que se tornou aquele edifício abandonado no Vale de Alcântara. Volta com uma mão-cheia delas, mas não as entrega todas. “Esta vou aproveitar, ainda tem...”, assumindo que pica tudo o que encontra. “Só não o faço quando são de diabéticos... Como é que se sabe? Prova-se, e se for doce...” E segue: “Vivo assim, sem usar dinheiro, há quase um ano.”
Há mais quem durma por ali, usando papelão e roupa velha, num piso subterrâneo coberto de todo o tipo de lixo, seringas usadas e excrementos. A sala de consumo fica logo na entrada, iluminada por um fiozinho de sol que teima em entrar pela porta de rede, e pelos isqueiros que queimam a droga na prata. Uns injetam, outros fumam, mas todos usam branca (cocaína) ou castanha (heroína), ou as duas.

É um cenário que julgávamos erradicado desde que os bulldozers arrasaram o bairro do Casal Ventoso, hipermercado de tráfico e consumo de droga, lugar e imagem de marca dos toxicodependentes dos anos 90 – mas que, na verdade, como sustentam os técnicos das associações que tratam as dependências (e os utentes também...), apenas se espalhou pela cidade, dando uma falsa ideia de situação resolvida. Faz agora 18 anos (foi em fevereiro de 1999) que a Câmara Municipal de Lisboa deu por concluído o processo de realojamento das famílias que restavam naquele bairro de barracas.
Na década de 90, falava-se de 50 mil consumidores de substâncias ilícitas na cidade. As inúmeras respostas políticas e sociais criadas entretanto permitiram reduzir esse número, mas não anulá-lo – hoje, sabemos que esses consumos desorganizados apenas se resguardaram.

DE VOLTA ÀS RUAS
Isso também poderá mudar em breve – caso avance agora o que há dez anos ficou pelo caminho, quando houve alguma abertura política para se adotar a medida mais polémica da nova lei de despenalização da droga: a sala de consumo assistido, ou de chuto, como diz a gíria toxicodependente. Há três anos, quando se começaram a sentir os efeitos nefastos da crise económica, e um aumento de recaídas de antigos heroinómanos, que o assunto voltou à baila. Em 2014, dava-se como certo que seria na Mouraria. Há um ano, começou a falar-se na Alta de Lisboa.

Um primeiro encontro sobre dependências e comportamentos aditivos em Lisboa decorreu na Câmara Municipal, no início de novembro, como uma espécie de pontapé de saída que permitisse o consenso necessário para avançar na instalação de uma sala de consumo assistido. Primeiro falou o presidente da autarquia, Fernando Medina: “A cidade ainda é um palco de riscos sérios de fratura social.” Seguiu-se João Afonso, vereador dos Direitos Sociais: “Só assim se podem combater de forma eficaz os consumos de droga a céu aberto.”

Os testemunhos internacionais fizeram o resto. Dagmar Hedrich, presidente do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência – organismo criado em meados dos 90, com sede em Lisboa – apresentou o saldo atual das salas de consumo assistido que existem espalhadas por toda a Europa, desde que abriu a primeira, na Suíça, em 1986. A mais recente acabava de ser inaugurada, nesse mesmo início de novembro em Paris – e seria da capital francesa, via Skype, que Eberhard Schatz, responsável de uma ONG holandesa que gere uma dessas instalações, daria o seu contributo para aquele encontro. “Congratulo-me porque depois de Atenas e de Paris, Lisboa também está à procura da melhor solução.” A rematar, aquela plateia ouviria ainda Purificación Santos, a presidente dos Médicos do Mundo do País Basco, contar o caso, feliz, de Bilbau (ver caixa).

João Goulão, presidente do atual SICAD Serviço de Intervenção em Comportamentos Aditivos e Dependências, lembra que, quando há uma década houve a tal abertura para se avançar, os dados que lhe chegaram do terreno mostravam que havia um decréscimo de consumos de alto risco. Os programas de substituição da metadona, com forte adesão, passavam então a ideia de que se bastavam a si próprios para resolver os problemas da dependência. “De repente, parecia que estávamos em contraciclo...” Até que, concede, a crise económica motivou um número considerável de recaídas entre os consumidores de heroína, levando muitos de volta para as ruas.

CLIENTES HABITUAIS
A carrinha da metadona está estacionada numa rua sem saída, no Lumiar, com vista para uns lotes de terreno que ainda ali têm um cartaz a anunciar que são para venda – mas que há anos foram votados ao esquecimento. Todos os dias, o enfermeiro de serviço espera quem está inscrito no programa – Programa de Substituição em Baixo Limiar de Exigência, de seu nome – para a toma diária.

Conhece-os até pela voz. Eles e elas chegam à janela da carrinha e dizem apenas o número. “Bom dia, 49”, diz um, “Bom dia, 63”, diz outra, ao que o técnico lhes responde pelo nome: “Bom dia, Rui. Olá, Ema.” João Matoso, enfermeiro nas carrinhas de rua ainda o Casal Ventoso, como o lembramos, estava de pé, confere a dose adequada numa tabela. “Quando eles faltam uns dias, reduzo sempre, à cautela...”, revela – eles acabam sempre por meter mais qualquer coisa. Vinte por cento daquela população é sem-abrigo. Há 1200 utentes a recorrer, todos os dias, às duas carrinhas do programa que atravessam Lisboa.

Manuel, 41 anos, é um deles. Desde os 20 que é viciado. “Bom, houve um tempo em que estive bem...”, mas depois a crise e o desemprego, persistente, levaram-no a uma recaída. Para aliviar a ressaca, aderiu à metadona – desde final de 2010 que visita aquela carrinha. Depois, para comprar a droga de eleição, só tem de seguir em frente. No meio daquele abandono, junto a uma caixa de eletricidade, e muito, muito lixo, há dois vultos quase sempre residentes. Leva-lhes kits de seringas, que eles depois trocam por dinheiro a quem aparece ao longo do dia – gente que quer “chutar” fora das horas de expediente do programa. É ali, entre os restos de mais um monte de seringas usadas e largadas no chão, que havemos de nos cruzar com mais uma série de clientes habituais.

Um deles é José, 42 anos, que está aqui há quatro invernos, desde que as autoridades apertaram o cerco nas ruas do Intendente. Antes, já tinha sido corrido do Casal Ventoso. “Vêm chatear-nos em vez de irem atrás dos traficantes. E o pior: tratam-nos como lixo”, lamenta-se. Já esteve num albergue, “mas aquilo tinha muitas regras...” Há uns meses largos que fica por ali, embrulhado nuns cartões. Ainda chegou a ocupar uma das tendas improvisadas que cresceram junto ao Eixo Norte-Sul, mas há dias a polícia passou lá e destruiu tudo.

Os outros que se cruzam no nosso caminho têm histórias muito semelhantes. “Injeto umas dez a 12 vezes por dia, o que arranjo...”, conta Francisco, os mesmos 42 anos de José, enquanto estende a mão para nos mostrar do que fala, umas bolinhas enroladas em papel, acabadinhas de comprar. A troco de informações importantes para quem trafica, lá lhe cederam lugar numa outra casa vazia, perto dali.

Estes são os únicos consumidores de droga para quem o sistema não tem resposta. Daí os técnicos que andam na rua defenderem que era muito melhor consumirem em salas próprias, com toda a segurança, sem partilhar seringas, depositando-as depois em recipientes para o efeito, acompanhados de técnicos que os pudessem auxiliar em caso de overdose. Ao mesmo tempo, manteriam uma ligação que permitisse, a médio ou longo prazo, oferecer-lhes outra solução, assumem os responsáveis da Ares do Pinhal e da Crescer na Maior, instituições que coordenam o programa de metadona e as equipas de ruas, respetivamente, e que nos guiam nestas visitas de reconhecimento.

UM FILME A DECORRER
Na Junta de Freguesia do Lumiar, a que pertence aquele lote de terreno ocupado por ervas daninhas e droga, o presidente Pedro Delgado Alves, 36 anos, mostra-se mais do que sensível ao cenário – afinal, foi ao site daquela instituição que chegou um certo e muito comentado email de um miúdo a pedir que aquelas pessoas ganhassem um local decente.

“Se continuamos a ter pessoas com comportamentos de consumo, afastá-las de determinado sítio sem oferecer respostas faz apenas com que se desloquem. Do Casal Ventoso passaram à Mouraria e ao Intendente; com a revitalização dessas zonas, acabaram por se fixar aqui.” Insistindo que as salas de consumo assistido devem ser um meio e não um fim, remata: “Quem está a viver o problema à porta de casa, e não é fácil conviver com o tráfico e o consumo, percebe que vai ser minimizado com esta solução. Esse filme, de consumo desenfreado que algumas vozes teimam em anunciar, já está a decorrer.”

Ali e em tantos outros locais esconsos da cidade. Rumamos a um qualquer edifício ao abandono em Xabregas, e a um descampado perto das Olaias, à entrada de umas garagens cerradas, por onde nunca devem ter passado carros, e não restam dúvidas. “Isto já são salas de consumo improvisadas”, ironiza Pedro, 45 anos, que nos conta a sua história numa rua junto a uns canaviais. “O pior disto é que, como não há alternativas, ninguém consegue ser civilizado, e faz tudo no mesmo sítio: comer, dormir, aliviar-se...” Mais acima, sentado ao fundo de uma rampa, protegido de olhares indiscretos por muros grafitados, encontramos Miguel, 50 anos, consumidor desde os vinte e poucos. Acaba a despachar a conversa porque quer fumar a sua chinesa (heroína) descansado – “e, desculpem, não gosto de o fazer à vossa frente”. Quando lhe perguntamos onde dorme, mostra um cartão de multibanco. “Só serve para abrir portas”, sorri. “Assim não durmo na rua.”

O cheiro nauseabundo, entre o lixo e as seringas usadas, há de repetir-se em mais um e outro dos locais do género, mais que conhecidos pelas equipas de rua da Crescer na Maior, que saem todos os dias especificamente para ir ao encontro daquelas populações. Espreitamos pelo corredor por trás do tal edifício abandonado do Vale de Alcântara e a abundância de seringas espalhadas é tal que mal se vê a cor do chão. Ali, de onde desapareceu o bairro do Casal Ventoso, continua a ver-se gente de passo apressado, encosta acima, encosta abaixo. Há quem se esconda nos arbustos, há quem prefira os escombros das traseiras das casas que restaram de pé. De tempos a tempos, também ali se erguem uma espécie de acampamentos provisórios, que crescem e se multiplicam, até uma denúncia os entregar e aquilo ir tudo abaixo. Depois, mais dia menos dia, tudo se reinicia.

SEM LUGAR PARA ONDE IR
“Sempre que a polícia vem aqui deitar tudo abaixo, nós perdemos-lhes o rasto. E temos de recomeçar todo o trabalho de ligação com estas pessoas de novo”, desabafa Andreia, uma das técnicas das equipas de rua. “Mas somos todos pagos pela Câmara, que tem de decidir que caminho quer seguir”, acrescenta, como quem espera um sinal mais firme da autarquia.

Talvez tenha de aguardar mais uns tempos, mas o assunto, sabe a VISÃO, não está de todo esquecido. Psicólogos e outros técnicos municipais foram, pouco depois da tal conferência, conhecer o funcionamento ao detalhe de dois tipos de salas de consumo que existem na cidade alemã de Frankfurt, uma das capitais europeias da redução de risco. Além disso, o orçamento da cidade para 2017 já inclui verba para o projeto-piloto avançar, muito provavelmente no segundo semestre do ano. “É uma realidade da qual a cidade já está consciente”, assume ainda o vereador dos Direitos Sociais, João Afonso.

A postura de Hugo condiz com a descrição: “Gosto de fumar o meu cachimbo aqui, que ninguém incomoda e eu também não incomodo”, desabafa ele, que aos 65 anos leva já mais de 25 disto, desde que se deixou seduzir pela heroína no início dos anos 90. Em 1997, já se mudara da Linha do Estoril para o Casal Ventoso. Hoje, vive num outro prédio sem gente, do outro lado da avenida, sempre fiel à cocaína, a sua droga de eleição.

A conversa segue, intermitente, interrompida uma e outra vez sempre que aparece algum dos seus clientes: Hugo dá-lhes papel de alumínio e seringas, eles dividem parte da droga que compraram. O tal açoriano que já tínhamos visto aparece de novo – ele que entretanto até se inscreveu no programa de metadona –, sempre a vasculhar o chão.

“Não tem qualquer autoestima”, comenta o outro, vai acabar infetado..., decreta, antes de acrescentar que o que não falta é cada vez mais gente a vir para aqui injetar, e que há tanto tráfico como antigamente, de manhã à noite”. O problema, insiste, “foi que eles deitaram isto abaixo e acabaram a espalhar tudo. Agora, há droga por todo o lado. Mesmo que uma pessoa queira sair daqui, vai para onde? Não tem para onde ir.”

N.R. Para proteger a identidade dos consumidores, os nomes foram alterados


(Reportagem publicada na VISÃO 1245, de 12 de janeiro de 2017)

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