quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Moradores da Vila Dias criticam o novo senhorio e apelam à intervenção da CML


Moradores da Vila Dias criticam o novo senhorio e apelam à intervenção da CML
POR O CORVO • 4 AGOSTO, 2017 •

“Já nem conseguimos dormir bem, nos últimos tempos, tal a preocupação”. Maria (nome fictício), 39 anos, e o marido têm andado em sobressalto só de pensar no que lhes poderá acontecer e aos três filhos menores, acaso se confirme o temido aumento da renda da pequena casa em que vivem na Vila Dias, no Beato – pela qual pagam 100 euros mensais. A morar ali desde 1999, sente que todo o esforço feito, desde então, na reabilitação de uma habitação que se encontrava em muito mau estado de conservação, possa agora vir a ser comprometido por essa possibilidade. “Nós sentimos isto como nosso. Fomos nós que mantivemos isto, gastámos do nosso bolso, eles nunca fizeram nada. A nossa casa, como está, saiu do nosso esforço”, diz, ansiosa.

 O “eles” é o senhorio sobre o qual recaem todas as dúvidas e suspeitas, em relação às suas reais intenções, por parte dos residentes das 120 casas ocupadas, de um total de 160. Temem estar a ser enxotados de um local com grande potencial de valorização urbanística. Pedem, por isso, a intervenção da Câmara de Lisboa. Mas Morais Rocha, que adquiriu a vila em abril com o objectivo de a regenerar e rentabilizar, reafirma o que já dissera a O Corvo, há um mês, e garante que a maior parte das pessoas o receberam de “braços abertos”. “Aquilo esteve muitos anos ao abandono, precisa de uma recuperação profunda. E é isso que vou fazer, sem aumentar as rendas aos que lá vivem. Os valores das novas rendas é que, naturalmente, serão diferentes”, afirma, assegurando que já deu conta das suas intenções a quem lá vive, “por diversas vezes”.

 Depois de décadas de intensificação da degradação, fruto da falta de investimento por parte dos antigos proprietários deste conjunto habitacional erguido em 1888, como residência dos operários da Fábrica de Fiação de Xabregas, a última primavera chegou com a promessa de um investimento de 5 milhões de euros na sua reabilitação integral. O investidor José Morais Rocha, através da Sociedade Vila Dias (SVD), dava a cara por uma operação de vulto, após ter adquirido o depauperado núcleo residencial por cerca de dois milhões de euros – 1,3 milhões entregues a um banco e 600 mil euros às antigas proprietárias. A recuperação gradual do edificado tem como objectivo atrair novos moradores. Sobretudo gente mais nova, com outras vivências, garante o novo dono. Mas a desconfiança sobre o que tal significa de facto é muita. “Estes senhores vendem uma imagem, mas estão no terreno a fazer outra”, acusa Hugo Marques, presidente da Associação de Moradores das Vilas Operárias do Beato.

Há um mês, a associação emitiu um comunicado, dirigido a todos os moradores, no qual os alertava para as dúvidas sobre quem estaria realmente a assumir o papel de senhorio: se o novo proprietário, Morais Rocha, se a empresa a quem este terá adquirido parte da posição, a Retoque, e a quem acusa de “enriquecimento à custa dos moradores, esquecendo-se dos deveres de senhorio”. Mas acusava-se também a SDV, do recém-chegado empresário, de ter anunciado um grande investimento na Vila Dias, sem que tal se esteja a verificar. “Na verdade, as reformas que andam a fazer é somente a substituição de degraus, quando a maior parte das casas necessita urgentemente de obras profundas, nomeadamente, substituição de telhados, esgotos, parte eléctrica (…), sendo que seria agora no verão a altura ideal para a execução destes trabalhos”, lia-se na carta, que acusava a nova empresa de apenas estar preocupada com o lucro, “não importando o bem estar e segurança das pessoas”.

 Hugo Marques reitera o que foi escrito e aponta para o que se está passar no terreno. Ou seja, muito pouco do que terá sido prometido. O Corvo pôde observar a existência de trabalhos de reabilitação em duas casas, dos quais se ocupava meia-dúzia de operários a um ritmo vagaroso, um deles carregando entulho com um carrinho-de-mão. Nada que se parecesse com uma empreitada de fôlego e, sobretudo, com a envergadura reclamada pelo estado lastimoso deste núcleo habitacional.

 Entre os moradores, está também a causar indignação a intervenção feita em casa de um vizinho da rua principal da vila, que terá visto a traseira ser emparedada devido à necessidade de proceder ao escoramento de uma casa de banho em risco de derrocada, no piso superior – situação retratada na anterior reportagem d’O Corvo. O homem, deficiente e único ocupante da habitação situada no rés-do-chão, terá visto diminuída a entrada de luz na sua fracção. Mas o rol de situações a precisar de intervenção urgente é tão vasto, que será difícil imaginar uma acção de reparação com tão escassos meios.

Razão pela qual Hugo Marques considera que o que se passa na Vila Dias “é tanto um problema habitacional como social”. Algo que, dado o estado de degradação a que se chegou, terá de passar por uma intervenção com outra dimensão. “O ideal seria a Câmara Municipal de Lisboa tomar posse disto, porque eles têm todos os instrumentos para resolver a situação que aqui observamos, que é de emergência social. Se a câmara não resolver agora este problema, vai ficar com este problema nas mãos e ter de realojar as pessoas”, afirma, acusando os proprietários de sugerirem aos residentes a inevitabilidade aumentos substanciais das rendas. “Se isto não se resolver, não tenho dúvidas de que vão começar aí a surgir barracas”, diz Maria do Céu Dias, também membro da associação de moradores. Em 2015, e dado o estado de degradação de um conjunto de imóveis, a CML realojou 18 famílias e demoliu essas casas.

 A vontade de uma intervenção camarária é sustentada em promessas da autarquia com quatro anos. Depois de uma visita da então vereadora da habitação, Helena Roseta, e do então presidente da câmara, António Costa, a autarquia terá aludido à necessidade avançar para a classificação daquele bairro como Área Crítica de Reabilitação Sistemática. Uma promessa reforçada por Costa, no ano seguinte, em outubro de 2014, durante uma reunião descentralizada de executivo camarário. “Os proprietários não podem estar a valorizar os seus imóveis à custa de não cumprirem com as suas obrigações de conservação”, disse, na altura, o agora primeiro-ministro, para justificar a necessidade de uma operação coerciva. Nessa mesma sessão pública, a actual vereadora da Habitação, Paula Marques, prometeu um “acompanhamento permanente da câmara, para responder a tempo e ter outra força face às várias agressões que o proprietário tem estado a executar”.

Nessa altura, os donos da vila eram Maria Paula Alves e Virgínia Alves, representadas pela firma Retoque – que, mais tarde, lhes viria a mover um processo judicial, por alegado incumprimento de contrato promessa de compra e venda. A referida empresa veio a ganhar o processo, mas também a posse do conjunto de imóveis, antes da chegada de SVD, de Morais Rocha, em abril passado. Apesar destas movimentações, a posse administrativa da Vila Dias por parte do município ainda estará, aliás, em aberto. Isto porque a câmara solicitou ao tribunal a anulação desta última transacção, por não ter sido cumprida a prerrogativa legal de lhe ser conferido o direito de preferência.

Uma opção que poderá ainda vir a ser activada até 6 de setembro, satisfazendo assim os anseios da alguns dos moradores e, sobretudo, da associação que os representa. Algo que, a efectivar-se, acontecerá no arranque da campanha eleitoral – na qual as questões da habitação serão um dos temas fortes. Antes disso, a 19 de agosto, está agendada a deslocação à Vila Dias da vereadora Paula Marques para uma sessão de auscultação dos moradores e eventuais esclarecimentos. Mas não são apenas os moradores a desejarem que a CML tome as rédeas do processo. Silvino Correia (PS), presidente em regime de substituição da Junta de Freguesia do Beato, encara a possibilidade com bons olhos. “Há muito tempo que a junta está consciente do que aqui se passa. Mas achamos que deve ser a CML a tomar a iniciativa, caso assim o entenda, até pelo seu grau de envolvimento no processo”, considera.

Tal cenário é visto por Morais Rocha, o novo dono da Vila Dias e o alvo de todas estas críticas, como pouco provável. “Não creio que a Câmara de Lisboa esteja muito interessada em assumir aquele conjunto de casas, sabendo-se que na sua posse terá 61 vilas ou bairros com características idênticas. Acho que eles têm outras preocupações e, além disso, agora existe uma entidade que, ao contrário do que se passava antes, dá a cara pela Vila Dias, fala com os seus habitantes, ouve-os e tem projectos para ali”, diz a O Corvo o empresário, salientando a sua intenção respeitar a memória arquitectónica. “Ao fim e ao cabo, estamos a seguir a estratégia definida pela câmara de recuperar um bairro histórico, respeitando a linha arquitectónica original”, considera, repetindo os propósitos já antes anunciados de realizar uma reforma integral das 160 casas. “Queremos reabilitar aquela vila, mas terá de ser de forma gradual. Roma e Pavia não se fizeram num dia”.

O empresário diz que a intervenção em curso respeitará um plano, que tem a suas prioridades. “Em primeiro lugar está a segurança das pessoas. As intervenções que estamos a fazer vão no sentido de não deixar degradar mais a estrutura das casas. Isso terminará em novembro. O passo seguinte será o de ir bloco a bloco, fazer paredes guarda-fogo, realizar reparações necessárias nos telhados, remodelar as infraestruturas e canalizações”, explica, salientando que espera ter essa reabilitação básica terminada até daqui a um ano ou ano e meio. Nada disse implicará uma subida nos valores das rendas de quem ali vive, garante. “As actualizações das rendas processar-se-ão de acordo com o que está na lei, nada mais”, diz. Em simultâneo, haverá lugar para a reabilitação integral das quatro dezenas de fogos desabitados, modernizando-os a fim de chamar novos moradores.

“O nosso negócio, a nossa filosofia, não é o do turismo, não é das malas com rodinhas. Queremos atrair par aqui jovens, pessoas com outras vivências, estudantes”, explica, assumindo estar já a pensar naquilo que poderá vir a ser aquela zona da cidade, com a abertura de novos negócios e a proximidade ao anunciado Hub Criativo do Beato. Para isso, vai ser determinante dotar de fibra óptica todas as casas remodeladas. Os valores mensais a pedir por tais casas oscilará entre os 250 e os 300 euros, “seguindo a política delineada pela própria câmara para um T1 numa antiga vila operária”. De acordo com o estudo de viabilização económica por si encomendado, Morais Rocha espera obter uma rentabilidade anual de 3% a 4% com o recebimento das rendas. Haverá cerca de 20 habitações que estarão em incumprimento, mas o empresário diz que os restantes moradores nada devem temer. E lamenta que a associação de moradores não o tenha contactado. “Queremos o diálogo, falem connosco”, pede.


Texto: Samuel Alemão

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