segunda-feira, 3 de julho de 2017

Uma nova fachada para salvar um velho largo


Uma nova fachada para salvar um velho largo

Esta nova fachada constitui um precedente valioso para os inúmeros casos semelhantes que pululam por toda a Lisboa e que urge corrigir.

PEDRO MASCARENHAS CASSIANO NEVES
4 de Julho de 2017, 6:16

Numa Lisboa que está na moda e em que o desejável boom turístico e “invasão” de exóticos habitantes anda de mão dada com a descaracterização acelerada da cidade e uma destruição patrimonial que parece não ter fim; em que reabilitação é confundida com fachadismo, condenando o que resta dos interiores oitocentistas, mas também, pasme-se, os pombalinos da Baixa; em que a extraordinária Rua das Janelas Verdes não pára de ser “bombardeada” e a também esplêndida das Portas de Santo Antão viu nascer uma enorme cratera que deixa “preso por arames” o que resta do Palácio da Anunciada; em que um outro palácio, o de São Miguel, na belíssima Praça da Alegria, viu o seu interior integralmente demolido de um dia para o outro e a emblemática Casa Pombalina da Rua da Lapa desapareceu num fim-de-semana, fazendo tábua rasa da classificação camarária e da zona de protecção patrimonial a que estava sujeita; em que a típica e integralmente conservada Praça das Flores pode ser cirurgicamente abatida por um mamarracho e a quinhentista Rua do Bemformoso, que escapou milagrosamente à hecatombe do Martim Moniz nos anos 40, se prepara para ser esventrada, ignorando alternativas, para a construção de uma mesquita e em que até, sacrilégio dos sacrilégios, o coração dessa jóia que é Alfama está teimosamente ameaçado por um “móno” indescritível para albergar o Museu Judaico; o anúncio de que um outro “móno”, já velhinho, se prepara para ser intervencionado com o fim de restaurar a imagem perdida de um largo histórico, constitui uma feliz novidade!

Edificado nos meados da passada década de 1970, o edifício em causa faz a curva do Largo Rafael Bordalo Pinheiro para a Rua da Trindade, e o seu impacto na envolvente constitui como que uma antevisão do “pesadelo” que espera os esplêndidos largos das Flores e de São Miguel de Alfama, acima referidos, caso os sinistros projectos para aí previstos sejam concretizados.

Uma fachada com superfícies envidraçadas que contrasta violentamente com as sete e oitocentistas que a rodeiam; uma cobertura em terraços que deve ser caso único na Zona Histórica em que se insere e um escusado e provocador revestimento de azulejos que, independentemente do seu valor “per si”, constitui uma tremenda agressão à extraordinária fachada azulejar do famoso “Prédio do Ferreira das Tabuletas” que lhe fica defronte, fazem com que este edifício seja desde o inicio apontado no ensino como aquilo “que não deve ser construído” nos centros históricos e esteja há muito presente em inventários patrimoniais como uma chaga urbana que urge corrigir.

A fachada prevista, embora não recupere a do edifício original do seculo XIX do qual existe registo fotográfico, uma prática recorrente em “países atrasados” como a Alemanha, a França, a Itália ou a Espanha, mas que a inteligência nativa cá do burgo insiste em desvalorizar como “pastiche”, recupera no entanto a imagem do mesmo, acrescentando-lhe um andar e uma mansarda que alinha com a do belíssimo “Prédio das Marquises” contínuo, que faz gaveto com a Rua Nova da Trindade, incluído no mesmo projecto.

Estão, pois, de parabéns a empresa construtora (atenção ao interior do segundo prédio!), a Câmara Municipal de Lisboa, numa excepção à catastrófica política de protecção patrimonial a que nos têm habituado, e a Direcção-Geral do Património Cultural, tantas vezes “distraída” ou até conivente com os atentados que a cidade tem sofrido, que, empenhadas numa solução de consenso que demorou mais de um ano, nos oferecem a recuperação da imagem deste recanto de eleição do nosso Chiado.

E, importantíssimo, esta nova fachada constitui um precedente valioso para os inúmeros casos semelhantes que pululam por toda a Lisboa e que urge corrigir. A começar, logo ali no mesmo largo, um pouco mais a baixo, no gaveto com a Travessa da Trindade, com a inenarrável cobertura que acrescentaram ao histórico edifício onde em tempos foram as “Conferências do Casino”!



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