domingo, 11 de junho de 2017

Quando a CML prejudica os moradores




Quando a CML prejudica os moradores
João Silva Jordão

Esta segunda-feira, 12 de Junho,pelas 19 horas, realiza-se uma Sardinhada Solidária para com os moradores da Rua dos Lagares em perigo de despejo. Evento aqui.
A Pseudo-Cidade Emergente
Como se não fosse suficiente as rendas no centro de Lisboa, e até cada vez mais na Grande Lisboa, estarem-se a tornar proibitivas para os Lisboetas, e sobretudo para a classe trabalhadora, agora torna-se rotina os moradores serem despejados das suas casas como resultado da venda dos prédios. Muitas vezes os prédios são vendidos para serem usados para alojamento local ou para serem transformados em hóteis, hostels ou condomínios de luxo.
Existem muitas esperanças à volta da nova lei dos arrendamentos, porém, por agora, a situação só se parece estar a degradar. Historicamente, a classe trabalhadora e os pobres sempre tenderam a serem afastados para a periferia da cidade. Agora são simplesmente os habitantes, sejam de que classe forem, com a exceção dos que têm o privilégio de serem proprietários das suas casas ou a minoria que pode pagar os preços cada vez mais exorbitantes das rendas. Este contexto está a gerar uma situação historicamente inédita: um centro urbano que se parece com uma cidade normal, mas que é cada vez mais um hotel gigantesco a céu aberto, onde os locais só são bem-vindos para trabalhar e visitar — se conseguirem pagar os transportes e os custos cada vez mais altos dos produtos e serviços. Estamos a ver a formação de uma pseudo-cidade, uma pseudo-Lisboa, uma caricatura de si mesma cada vez mais injusta e cada vez mais ultrajante.
Nem todas as áreas da cidade são afetadas da mesma forma. Uma área que tem sido particularmente atingida é a Mouraria. As cidades são por natureza complexas; são o palco de conflitos de interesse, convergência de diferentes pessoas, instituições e estruturas. Não há cidade sem conflitos nem sobreposição de interesses. Não há cidades sem as suas respetivas teias de poder, que, depois, dificultam a abordagem dos problemas urbanos e que criam a tendência para nos dispersarmos e culparmos toda a gente e mais alguma. Culpar toda a gente é equivalente a não culpar ninguém em particular.
Quando olhamos para o caso do Intendente e da Mouraria, duas das áreas em que a gentrificação — a expulsão sucessiva dos habitantes nativos em beneficio de turistas e setores da população mais ricas — se faz mais notar, facilmente chegamos à conclusão de que há uma estrutura que deve ser o alvo principal das nossas atenções: A Câmara Municipal de Lisboa (CML)
Gentrificação do Intendente e Mouraria- Projeto Central da CML
As áreas da praça do Martim Moniz, Intendente, Anjos e Mouraria têm sofrido intensas transformações ao longo dos últimos anos. A imagem negativa destas áreas, que advinha dos problemas de criminalidade e toxicodependência, principalmente no Intendente, representavam uma nódoa na cidade de Lisboa, bem como um problema urbanístico. Se considerarmos a centralidade da zona, a proximidade à Baixa Pombalina, assim como o seu grande potencial habitacional, cultural, económico e turístico, chegamos à conclusão de que era somente uma questão de tempo até a área ser alvo de projetos ambiciosos de reabilitação por parte da CML. Depois de iniciativas dispersas e pontuais, o então Presidente da CML e atual Primeiro-Ministro, António Costa, decidiu, em 2011, mudar o seu escritório para o Largo do Intendente (Jornal de Notícias, 2011), onde permaneceu até 2014 (Público, 2014). Um dos seus principais objetivos era “dar confiança às pessoas para investirem” numa área da cidade considerada de “má fama” (Público, 2011). Ou seja, desde o inicio que o projeto de reabilitação do Intendente pretendia aumentar as taxas de investimento financeiro na zona.
A relocação do escritório do Presidente da CML para o Largo do Intendente representou o início da reabilitação da imagem da área. A reabilitação tem sido impulsionada em grande parte por um projeto chamado Ai Mouraria, que promete ‘Requalificar o Passado para Construir o Futuro’. Este projeto tem seguido os eixos que podemos constatar no site do projeto Ai Mouraria, que conta com o apoio do QREN, da CML e das Freguesias locais. Podemos resumir os objetivos do projeto Ai Mouraria da seguinte forma (Ai Mouraria, 2017b):
“A intervenção de maior visibilidade e indutora de novos comportamentos realizada na Mouraria foi a requalificação do espaço público (…). A aposta na melhoria de condições de acessibilidade e de mobilidade foi pensada em função da envelhecida população residente (…). Por outro lado, esta requalificação permitiu a divulgação da Mouraria nas rotas turísticas da cidade (…). Foi instalada sinalética direcional e de identificação dos diversos edifícios de valor patrimonial e dos espaços públicos mais relevantes. Identificados como estruturas identitárias foi promovida a reabilitação e refuncionalização de dois edifícios, onde a marca da história da Mouraria se faz sentir:
• Quarteirão dos Lagares (…) As alterações promovidas permitem a instalação do Centro de Inovação da Mouraria, polo de inserção de atividades económicas.
• Sítio do Fado na Casa da Severa, instalado na casa onde viveu a fadista Severa e onde se desenvolvem atividades ligadas ao fado.
A Junta de Freguesia de São Cristóvão e São Lourenço, entretanto integrada na Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (…) teve as suas instalações ampliadas, de modo a ter melhores condições para o trabalho que têm vindo a desenvolver com os grupos de risco — jovens e idosos.”
Podemos resumir a ‘Estrutura do Programa de Ação’ do Ai Mouraria (2017c) como sendo uma série de objetivos gerais à volta da cultura e da segurança, misturado com intervenções urbanísticas estratégicas, que, segundo a CML, irão através da requalificação arquitetónica potenciar toda a área envolvente. Os objetivos estão divididos em duas partes: os “eixos estruturantes”, de natureza urbanística e arquitetônica, e os “eixos instrumentais”, de natureza maioritariamente cultural e turística. Encontramos então nos “eixos estruturantes” o Quarteirão dos Lagares, ao qual é dada especial atenção.
Os Despejos no Quarteirão dos Lagares
O Quarteirão dos Lagares é uma das intervenções mais importantes do projeto Ai Mouraria. Para este local foi designada a criação do Centro de Inovação da Mouraria, financiado e gerido pela CML. A CML investiu 1.618.343 Euros na “Refuncionalização e reabilitação do Quarteirão dos Lagares para criação do CIM (Centro de Inovação da Mouraria)”, uma parte substancial (21.4%) das verbas totais projeto Ai Mouraria (7.567.964 Euros)(Ai Mouraria, 2017d).A intervenção no Quarteirão dos Lagares propõe (Ai Mouraria, 2017e, ênfase adicionado):
“A intervenção no Quarteirão dos Lagares configura a estratégia de criação de estruturas identitárias e de referência urbana criadas para o bairro da Mouraria.
“Localizado em pleno coração do bairro, a refuncionalização e reabilitação do conjunto do Quarteirão dos Lagares vão permitir manter um edificado de características ímpares na cidade.
“No conjunto edificado é instalado o Centro de Inovação da Mouraria (CIM), projetado como um edifício multifuncional com gestão e agenda condicionadas ao princípio da promoção e instalação de atividades inovadoras, preferencialmente de carácter económico, cultural e social.
“Dado que estamos perante um conjunto que apresenta um relevante valor patrimonial — situação que fora confirmada pelas sondagens arqueológicas, realizadas tanto no edificado como no logradouro, foi definido um conjunto de condicionantes ao desenvolvimento do projeto e à realização da obra. A intervenção tem como principal objetivo a sua valorização enquanto património histórico, tornando-o, tanto quanto possível, um espaço de fruição para a população e para os visitantes…”
É particularmente notável que a descrição do projeto faz questão de realçar a importância da requalificação urbanística ter como imperativo a proteção de certas características arquitetônicas para a manutenção do seu valor histórico e patrimonial. Não obstante, apenas refere que tem como objetivo ‘tanto quanto possível’ fazer com que seja um local de fruição para a população, assim como para os visitantes. Ou seja, a preocupação principal é com o ambiente construído e o valor inerente que tem e não na manutenção ou proteção de população local.
É neste contexto de forte investimento num complexo adjacente, o Centro de Inovação da Mouraria, por parte da CML, e de turistificação do centro de Lisboa que os moradores do edifício 25 da Rua dos Lagares começaram a receber ordens de despejo em Fevereiro de 2017. Despejos para que seja construído um hostel, um hotal ou até mesmo um condomínio de luxo. Alguns moradores apontam para uma situação similar à narrada por outros inquilinos: a recepção de “cartas intimidatórias” que visan cultivar nos moradores um sentimento de insegurança e de medo (Público, 2017b).
Pouco tempo depois dos moradores terem começado a receber cartas com ordens de despejo dos novos proprietários, a CML emitiu uma ordem aos proprietários do edifício para que fossem feitas obras de reabilitação no edifício. Estas últimas acabaram por ser insuficientes e o edifício continuou com problemas de humidade e pragas de ratos e de baratas (Público, 2017c). Na mesma altura, em Fevereiro de 2017, os moradores foram reconfortados por Manuel Salgado, Vereador do Urbanismo, que disse que “a carta (com ordem de despejo) que receberam não tem qualquer validade e não têm, de forma alguma, de cumprir o que é solicitado” (Público, 2017c). Efetivamente os inquilinos começaram a receber cartas de aviso de despejo antes que a escritura da venda do edifício se tivesse oficializado. No entanto, e uma vez que a escritura foi oficializada, confirmaram-se as ordens de despejo e o seu valor legal.
Mais tarde, Helena Roseta, Vereadora da Habitação, assumiu uma postura menos reconfortante na sessão da Assembleia Municipal de Lisboa realizada a 6 de Junho de 2017. Seguiu-se uma audiência com os inquilinos do prédio 25 da Rua dos Lagares, em que explicou que “já foi mudada a lei das rendas, mas ainda não foi promulgada pelo Presidente da República” (Público, 2017b).
Parece que a CML estava errada quando afirmava que não existiam planos confirmados para a construção de um hotel ou de que as cartas de despejo eram inválidas.
O Executivo da CML prometeu na Assembleia Municipal fazer o possível para ajudar os inquilinos, mas de promessas está o inferno cheio. A realidade é que a CML não coneteu apenas o erro de reconfortar inutil e erroneamente os moradores, mas também vários erros que têm nos últimos anos provocado a gentrificação agressiva da Mouraria. Os moradores não são protegidos enquanto os lucros do mercado turístico o são. Em muitos casos nem sequer ocorre incluir-se nos objectivos dos documentos oficiais a protecção — formal e não prática — dos habitantes contra os efeitos nefastos efeitos da gentrificação e turistificação. Ou seja, enquanto que muitos poderão pensar que a CML não está a fazer o suficiente para parar a onda de turistificação e gentrificação, a situação é de facto pior: em muitos casos são as próprias ações da CML, nomeadamente o investimento de fundos públicos em projetos de requalificação, que são os fatores preponderantes por detrás dos despejos constantes dos moradores. Podemos concluir que a periferização urbanística dos estratos sociais mais pobres da população, bem como o esvaziamento de habitantes do centro da cidade em geral, não se assume como uma preocupação urgente da CML.
Fachada do Centro de Inovação da Mouraria.
Situações parecidas à dos despejos do prédio 25 da Rua dos Lagares acontecem um pouco por toda a parte na cidade de Lisboa. Não obstante, é importante notar a proximidade deste edifício a um dos locais que foi alvo de maior investimento e atenção por parte da CML nos seus esforços de “reabilitação” da área. Esta é talvez das demonstrações mais paradigmáticas dos resultados práticos de uma política de requalificação urbanística negligente e irresponsável, bem como das consequências de políticas de habitação insuficientes e míopes.
Gentrificação e Turistificação — Entre a Preocupação e a Revolta
Quando consideramos o investimento substancial em equipamentos, edifícios e eventos culturais na área do Intendente e da Mouraria dos últimos anos, podemos chegar à conclusão de que o dinheiro público usado pela CML na reabilitação destas áreas tem produzido inúmeros efeitos adversos para muitos dos seus habitantes. Presenciamos uma situação em que o financiamento público, que é suposto ajudar os mais desfavorecidos, acaba por fazer precisamente o oposto: potencia a gentrificação e a expulsão dos moradores, seja direta ou indiretamente.
A turistificação e gentrificação da cidade de Lisboa não é apenas uma problemática de relevância para os lisboetas, mas de atenção e preocupação a nível nacional. Vemos conferências a serem organizadas, como a Trienal de Arquitectura de Lisboa, em Junho de 2016, onde se falou da necessidade urgente de “estancar a sangria”. Nesto evento participaram moradores que exprimiram preocupações, experiências e frustrações, havendo até quem falasse da necessidade de “expropriação” e “ocupação” (Observador, 2016). Surgem petições com centenas de assinaturas para “Travar o Alojamento Local”. Vários coletivos, que lidam com os problemas da habitação, surgem ou ressurgem, como a Rede de Solidariedade de Lisboa, o grupo Morar em Lisboa ou a Habita. Em suma, o problema da habitação tornou-se durante os últimos anos um dos pontos mais susceptíveis de gerar movimentos sociais de cidadãos dinamizados por habitantes indignados. A turistificação e a gentrificação do centro de Lisboa têm feito com que algumas considerações sobre as dinâmicas mais nefastas do capitalismo e os efeitos da crise de habitação transcendam a esfera abstrata e se tornem reais, tangíveis. Tornam-se em muitos casos factores preponderantes na vida quotidiana dos habitantes lisboetas. A habitação é hoje uma fonte real de revolta generalizada e o urbanismo é, neste contexto, inquestionavelmente uma área de estudo e de prática com uma preponderância e potencial mobilizador político cada vez maiores.
Os lisboetas estão a começar a desenvolver uma atitude cada vez mais negativa para com os turistas ou a passar horas a discutir os efeitos negativos de plataformas digitais, como o Airbnb. Mas quando o fazemos estamos somente a encontrar subterfúgios. A verdade é que não somente a CML não tem feito o seu trabalho, como muitas vezes prejudica os interesses dos habitantes de Lisboa. A CML comporta-se desta forma porque ainda não se confrontou com um movimento massas em defesa de outro modelo de habitação. Os interesses especulativos que agem com o apoio da CML apenas podem ser derrotados pela acção colectiva de todos e todas que entendem que a habitação não é um privilégio ou um negócio, mas um dos direitos mais elementares para uma vida digna. Não basta esperar pela “boa-vontade” da CML ou por uma relação de forças mais favorável. É preciso começar a agir já juntando todos os colectivos e organizações numa junta conjunta, elaborando um programa político comum e uma frente comum pelo direito à habitação.
“Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer” — Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores da autoria de Geraldo Vandré
Referências
Ai Mouraria (2017a), “Há Vida na Mouraria”, Câmara Municipal de Lisboa (online), disponível em http://www.aimouraria.cm-lisboa.pt/. Acedido a 4 de Maio de 2017.
Ai Mouraria (2017b), “Descrição de Intervenção”, Câmara Municipal de Lisboa (online), disponível em http://www.aimouraria.cm-lisboa.pt/descricao…/descricao.html. Acedido a 4 de Maio de 2017.
Ai Mouraria (2017c), “Estrutura do programa de acção”, Câmara Municipal de Lisboa, disponível em http://www.aimouraria.cm-lisboa.pt/…/estrutura-do-programa-…. Acedido a 4 de Maio de 2017.
Ai Mouraria (2017d), “Investimento dos Parceiros”, Câmara Municipal de Lisboa (online), disponível em http://www.aimouraria.cm-lisboa.pt/…/investimento-dos-parce…. Acedido a 8 de Junho de 2017.
Ai Mouraria (2017e), “Quarteirão dos Lagares”, Câmara Municipal de Lisboa (online), disponível em http://www.aimouraria.cm-lisboa.pt/quarteira…/descricao.html. Acedido a 8 de Junho de 2017.
Diário Imobiliário (2016), “MURO — Festival de Arte Urbana” (online), disponível em http://www.diarioimobiliario.pt/…/MURO-Festival-de-Arte-Urb…. Acedido a 9 de Junho de 2017.
Jornal de Notícias (2011), “António Costa mudou gabinete para o Intendente” (online), disponível em http://www.jn.pt/…/antonio-costa-mudou-gabinete-para-o-inte…. Acedido a 8 de Junho de 2017.
Público (2011), “António Costa muda-se para o Intendente em Março” (online), disponível em https://www.publico.pt/…/antonio-costa-mudase-para--o-inten…. Acedido a 9 de Junho de 2017.
Público (2014), “António Costa regressa aos Paços do Concelho “à procura de novas Mourarias”” (online), disponível em https://www.publico.pt/…/antonio-costa-regressa-aos-pacos-d…. Acedido a 8 de Junho de 2017.
Público (2017), “Carta que ordena despejo na Mouraria “não tem qualquer validade”” (online), disponível em https://www.publico.pt/…/carta-que-ordena-despejo-na-mourar…. Acedido a 8 de Junho de 2017.
Público (2017b), “Moradores da Mouraria pedem ajuda da Assembleia Municipal de Lisboa em acção de despejo” (online), disponível em https://www.publico.pt/…/moradores-da-mouraria-pedem-ajuda-…. Acedido a 8 de Junho de 2017.
Observador (2016), “Turismo. “Urge estancar a sangria”, exige grupo de lisboetas” (online), disponível em http://observador.pt/…/turismo-urge-estancar-a-sangria-exi…/. Acedido a 8 de Junho de 2017.




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