quinta-feira, 1 de junho de 2017

Há uma vila no Beato que vai ser recuperada por privados mas as rendas mantêm-se




Há uma vila no Beato que vai ser recuperada por privados mas as rendas mantêm-se

Privados vão investir cinco milhões de euros na reabilitação da Vila Dias, em Lisboa. E fica uma promessa: as rendas mantêm-se e os novos contratos, a pensar em estudantes, não vão além dos 300 euros por casa. "Investir neste projecto é mais seguro do que ter o dinheiro no banco", dizem.

MARGARIDA DAVID CARDOSO 31 de Maio de 2017, 8:50

A Vila Dias já tinha perdido a conta aos senhorios. Ora era um procurador, ora era outro. Ora pagavam a renda em mãos, ora faziam depósito no banco. Lucinda (que pede para deixar o apelido fora da conversa) mora naquela vila do Beato, em Lisboa, há mais de 50 anos e nunca viu a cara de quem paga ao final do mês. “Nem vi os novos nem os velhos”.

Os novos senhorios fizeram-se anunciar na semana passada. Através de uma carta, Lucinda ficou a saber que a vila vai ser reabilitada: uma sociedade privada tem, desde Abril, a posse dos terrenos e destinou cinco milhões de euros para a reabilitação das 160 casas da centenária vila operária. Vão ser pintadas de branco, substituídos os telhados, cuidadas por dentro e por fora.

Dos promotores da obra, há uma promessa: “Jamais vamos destruir seja o que for”. José Morais Rocha, à frente da Sociedade Vila Dias (SVD), diz que o objectivo é “tornar a vila num espaço agradável de convivência entre jovens e os mais velhos”. Não espera tirar dali lucro imediato. “Não queremos explorar as pessoas. Sabemos as condições económicas em que vivem e vamos respeitar isso”, garantiu o engenheiro ao PÚBLICO. Os valores das rendas já existentes vão ser mantidos e os novos contratos vão ser feitos à luz daquilo que são os preços praticados pelo programa de Renda Acessível da Câmara de Lisboa, até 300 euros por habitação.

Os promotores – entre os quais Paula Castro Alves, familiar dos antigos proprietários – estimam que, das 160 casas da vila, 40 estão devolutas. São estas últimas que vão receber novos inquilinos e novos contratos. A sociedade quer atrair jovens, com casas e preços “à medida do estudantes”.

Mas na óptica dos moradores os números não são tão optimistas. No Café Ângelo, na esquina de acesso à vila, diz-se que já se perdeu a conta ao número de portas arrombadas, de casas tomadas ilegalmente. “Ainda anteontem foi mais uma. Isto não se vê em mais lado nenhum”, está Catarina a comentar, “são despejados de um lado, ocupam o outro”. Diz-se que os antigos senhorios só recebiam 65 rendas.

Catarina pede para ser identificada por este nome fictício – sabe que o ambiente entre moradores já viu melhores dias. As discussões e os insultos tornaram-se frequentes. De um lado quem cumpre, do outro quem escapa ao pagamento da renda. Não é só a ocupação que a preocupa: “São os cães abandonados nas traseiras, o barulho, o lixo. E chamar a polícia é a mesma coisa que não fazer nada”.

Pensar que Maria Fernanda Neves costumava deixar a chave de casa na porta, dia e noite, faz todas as vizinhas rirem. “Antes isto era uma família. Agora só há dois ou três que se entendem”, diz. Vive ali há 56 anos. Viu as ocupações intensificarem-se há 20. “Todo o mundo manda, mas ninguém paga”. Quantas vezes já pensou fazer o mesmo. Sente-se gozada: “Olha aquela parva que paga luz, água e renda”.

Os novos proprietários da Vila Dias destacaram duas pessoas para “consultar essas pessoas e tentar legalizá-las”. José Morais Rocha adianta que a SVD quer avançar com “planos de entendimento” com estes moradores para que sejam pagas as rendas em atraso. “Sabemos que algumas pessoas não vão conseguir pagar tudo de uma vez, mas queremos tornar estas contas transparentes”, explicou o promotor.

“Aquilo não era uma casa”
A Vila Dias começou a ser construída em 1888 para alojar os operários das fábricas têxteis e do tabaco de Xabregas. A degradação desde cedo se tornou a principal característica. Maria Fernanda Neves trabalhava na Fábrica do Sabão de dia, dormia num quarto com percevejos de noite. Durante estes tempos de “casas em que só lhe faltava o colmo”, foi “o ambiente e a amizade” que a mantiveram na vila. Com o tempo, cada um foi fazendo as suas “obritas”. Mas hoje, “se pudesse”, Maria já cá não vivia.

A vila é uma estrada de uma via, onde se serpenteiam os carros estacionados em frente às portas e, nas paredes, há uma antena parabólica ao lado de cada janela.

O projecto prossupõe uma “reabilitação total do bairro, sem demolição, com a preocupação de manter a traça histórica” dos edifícios, garantiu Morais Rocha. A fibra óptica vai substituir as antenas e o branco volta às paredes sucessivamente interrompidas por diferentes cores. Antes do projecto dar entrada na câmara, os promotores querem avançar “com as pequenas reparações mais urgentes”.

A sociedade privada estima um retorno demorado do investimento. “Afinal há rendas de 40 e 50 euros”, recordou Morais Rocha. Por agora, importa aos sócios ter o dinheiro investido em imóveis: "Investir neste projecto é mais seguro do que ter o dinheiro no banco". Estimam uma rentabilidade (remuneração do capital investido) entre 3 e 4% ao mês.

O projecto tem a aprovação dos vizinhos à mesa do café. As “casinhas branquinhas, tão bonitas”, convenceram Maria Fernanda. Só lhe faltava um jardim à porta. Augusta, ao balcão, mal pode esperar pela esplanada.

Idalina espera para ver. “Se vão fazer ou não, eu só acredito quando vir”. A vida já lhe ensinara a “não esperar muito de promessas alheias” e já muitos lhe prometeram obras. Há 28 anos naquela morada, viu uma vez a rua “a ser uma vez sarapintada”. “As obras de minha casa, que está toda arranjadinha, graças a Deus, fui eu que as fiz”. Antes dos “dois mil contos” que a irmã investiu, “aquilo não era uma casa”. Os antigos donos faziam fogueiras no chão. Tinha a sanita na cozinha.


Esses tempos já lá vão, mas os moradores antecipam obras difíceis. Ainda “há casas a cair de maduras, com os esgotos a ir para a linha, sem chão nem nada”, descreve Lucinda. Com muitas mudanças, o seu medo é perder o espaço onde tem os cães. Morais Rocha quer sossegar estas preocupações: “Vamos respeitar as hortas e os espaços que têm. Não vamos destruir um património que já não se faz”.

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