sexta-feira, 2 de junho de 2017

García-Ventosa: “Porto e Lisboa têm de atuar já, antes que o turismo transforme a cidade”


García-Ventosa: “Porto e Lisboa têm de atuar já, antes que o turismo transforme a cidade”

Aviso de Gerardo García-Ventosa, o diretor da Fundação Arquia, a vertente cultural debaixo da alçada da cooperativa catalã Caixa dos Arquitetos, que agora se expande para Portugal

CESALTINA PINTO
ECONOMIA 31.05.2017 às 16h44

Gerardo García-Ventosa é o diretor da Fundação Arquia, a vertente cultura debaixo da alçada da cooperativa catalã Caixa dos Arquitetos que agora se expande para Portugal. A VISÃO foi apanhá-lo numa das cafetarias do aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, quando estava de partida para Barcelona. Nesta última estadia – que passou também por Lisboa, onde manteve contactos com a Ordem dos Arquitetos – visitou a Casa da Arquitetura, em Matosinhos, o Mercado do Bolhão e Siza Vieira e Souto de Moura.

Licenciado e doutorado em Arquitetura, este homem de conversa fácil acha “desafiantes” os tempos que se vivem. Já foi professor na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona e membro do Colégio de Arquitetos da Catalunha. Entre alguns dos prémios que recebeu, conta-se o da reconstrução do pavilhão da Suécia da Exposição Universal de 1929 em Berga.

Porto e Lisboa estão na moda?

Estão certamente com muita atividade, sobretudo Lisboa.

Não temem que haja por cá uma bolha no imobiliário?

Bem, nós somos muito precavidos e não embarcamos em especulações. Somos uma cooperativa e, como tal, estamos fortemente dotados de capital para responder aos possíveis problemas.

Os arquitetos por cá queixam-se muito de que não há trabalho e quando há, não lhes pagam, sobretudo os mais novos.

É geral. Em Espanha passa-se o mesmo. Muitos estão desempregados, por isso a Fundação quer alargar o ângulo das nossas bolsas profissionais. O arquiteto não tem só de projetar e as bolsas que atribuímos, que, em principio, era para estudos de arquitetura, ampliamos também para a administração geral de arquitetura, para práticas de urbanismo e investigação em arquitetura social. Há que abrir o campo para além do âmbito tradicional dos arquitetos.

Até há bem pouco tempo promoviam-se só novas construções. Agora a prioridade é a reabilitação?

Sim. Isso é assim agora em toda a Europa, Alemanha sobretudo. A reabilitação será a chave na próxima década, de certeza.

Esta reabilitação está muito ligada ao turismo?

Sim, o turismo é o motor da península ibérica.

Isso pode descaracterizar uma cidade, ou não?

Bom, aí está o problema. Por exemplo, com a crise mundial quem salvou Barcelona foi o turismo.

Então, reabilita-se para o turismo ou para os habitantes?

A administração pública, as autarquias e o governo têm de atuar de forma eficaz para gerir este aumento de procura turística. Este crescimento gera riqueza, mas pode mudar a configuração de uma cidade. O turismo vai, pouco a pouco, mudando as cidades e os sítios. Creio que têm de ser encontradas políticas que consigam estabelecer um equilíbrio. Por exemplo, já visitei, na última vez, o mercado do Bolhão, no Porto [que está a ser reabilitado]. E, contudo, o turismo ainda não mudou a sua imagem. Pode haver uma entrada para turistas, mas depois lá dentro pode ficar como sempre esteve. No mercado de Barcelona, no La Boqueria, entras e o espaço está quase todo ocupado por lojas de produtos alimentares para turistas. Como tal, mudou a sua configuração. Isto resultou de um crescimento desorganizado. Ou seja, é a administração que tem de atuar.

Em Barcelona há alguma lei que proteja isso?

Estão a fazê-la só agora! Até aqui, não havia regras. Agora, está a legislar para que isto não volte a acontecer, o que vale também para os apartamentos turísticos ou para a reabilitação de casas. Porto e Lisboa têm de atuar já, antes que o turismo transforme a cidade. A livraria [Lello], por exemplo, não é mais livraria! O turismo é um bom investimento, mas há que atuar para não apagar a história ou a origem dos espaços. Infelizmente, é sempre punitivo. Em Barcelona também gerou movimentos e uma dinâmica comercial em que as pessoas de maior poder de aquisição acabaram por desalojar os que lá estavam.

O turismo é um fator importante na nossa vida?

Sim, isso é certo. Nos transforma. Mas também não nos podemos deixar cair no imobilismo. Há que encontrar um equilíbrio entre duas tendências. Não deixar destruir porque gera riqueza, apesar de não gerar só riqueza económica. Também gera riqueza cultural, porque o intercambio cultural de gente que chega de fora enriquece-nos a vida e fortalece a cidade. O errado é quando a altera tanto que transforma a sua identidade. E aí tem mesmo de se encontrar um equilíbrio. Não é um tema a preto e branco. Há uma tensão entre duas vertentes: deixar a cidade imobilizada, tal como está, o que significa não haver crescimento nem evolução; ou não deixar que a livre pressão do turismo e do comércio distorça a sua configuração histórica. Há que haver um equilíbrio e envolver todos os organismos.

Mas também não há casas para arrendar...

Há que arranjá-las. Há um outro problema nesta questão das cidades e do turismo. Há uma mudança de ordem económica que já não acontecia desde os anos 45 ou 50. Até à crise de 2008, estivemos em crescimento contínuo. Qualquer coisa valia sempre mais. Esta crise gerou uma limpeza e agora estamos numa época em que temos de definir novos modelos, pois os que havia antes já não servem. É desafiante. Anteriormente, o marco para tomar decisões era o do aquecimento económico contínuo. Na nossa época, tivemos a sorte de poder pagar a nossa casa, pois era o momento que tudo haveria de valer mais. Agora, os mais jovens dificilmente terão casa própria. Há que manter a mente aberta para que haja uma adaptação a esta evolução do sistema, até que se construa um novo modelo. Está claro que agora estamos a sair da crise, já não há tanto crescimento negativo, a tendência está a mudar. Mas ainda não se sabe qual será o modelo de crescimento ou de desenvolvimento económico. Temos de estar atentos ao que acontece em cada dia, porque nos próximos anos esse modelo não se vai ainda consolidar.

Mas entretanto os mais jovens não conseguem habitar os centros da cidade.

A administração pública não pode deixar que isto aconteça porque sim. Tem de estar ordenado. As cidades têm de ser, primeiro, para que os seus habitantes estejam felizes. Há que ter em conta a hora de fazer uma política de ação, estabelecer parâmetros. Não se pode ver o turismo como um problema em si mesmo. Há que desenhar as politicas que atuem sobre a cidade e a sua vida em geral, entender o que se passa para orientar as mudanças. Há que ver o problema em todo o âmbito para se tomar boas decisões. Para uma boa análise é preciso muita informação. Não é só o turismo, é também o comércio, é também a terceira idade, são os transportes... No final, a cidade tem de dar felicidade a quem está nela. Há que encarar isto com políticas a médio e longo prazo, não a curto prazo ou sob mandatos de quatro anos.

As cidades devem ser lugares de passagem, instáveis?

Na cultura latina são estáveis. Na cultura anglo-saxónica são instáveis. Por enquanto, a tendência agora é para serem todas instáveis.

Por causa do turismo?

E não só. Por causa dos tempos que vivemos. No norte da Europa foi a cultura calvinista, - e não a católica, como a nossa - que fez com que o modelo fosse o da mobilidade, que foi moldando isso na essência dos povos. Nós, latinos e mediterrânicos, temos raízes muito mais fortes. Os tempos atuais vão precisamente alterar isso, para ter mais mobilidade, ter capacidade de expandir e para ser feliz neste ambiente que rompe com a cultura latina. Temos de mudar de mentalidade e ser mais abertos para entender o que passa e assim analisar e atuar em consequência.

E como explicar isso?

Que antes não havia mobilidade e agora há. Que o nosso mundo latino e mediterrânico, fechado no seu sítio, acabou com a globalização. Porquê que o programa europeu Leonardo da Vinci promove a mobilidade? Não só para que os mais novos viagem, mas também para que conheçam e entendam novas culturas, outras formas não só de pensar como de se posicionar perante a vida. É muito interessante viver estes tempos de mudança, que podem ser criativos. E nós, os arquitetos, também estamos aqui para isso. Temos capacidade de analisar as coisas, estruturar e vermos o que conseguimos melhorar...

O turismo, e o que ele desencadeia, é bom para os arquitetos?

Sim. Creio que os especialistas para desenhar uma cidade são os arquitetos. Como tal, são eles e os urbanistas que devem definir a política de uma cidade. Mas a administração pública não os ampara.

E porque não?

Porque o arquiteto sempre se preocupou em desenhar e não a levantar questões também. Mas estamos a mudar... Agora, em Barcelona, estamos a pensar fazer um mestrado executivo para arquitetos para fomentar a criação desse lado desta profissão: levantar questões e questionar recursos e estratégias.

O fenómeno airbnb, é bom ou mau para uma cidade?

É bom porque moderniza uma cidade. O que acontece é que nem sempre significa que torne a cidade mais amável para os seus habitantes. Ás vezes torna-a só amável para quem nela passa, porque baixa os custos.

O que é e deve ser, então, uma cidade?

Direi que o espaço da cidade pertence às pessoas. Nunca vi uma cidade mais caótica do que S. Paulo, a nível urbanístico. É super caótica, não há ali nenhuma política de crescimento urbanístico da cidade, gerando grandes tensões sociais. Penso que é das cidades mais complicadas.

Há outra mudança interessante para os arquitetos do mundo latino-americano. Depois de anos de premência de uma arquitetura mundial dominada pelos anglo saxónicos, marcada por uma arquitetura fria e em altura, nos últimos anos começou a haver arquitetos portugueses, espanhóis e latino-americanos que se impuseram e ganharam prémios Pritzker... E estão a conseguir marcar uma nova tendência. Já não é só a arquitetura fria e alta, mas uma arquitetura que baixa na sua extremidade, convidando á participação [das pessoas]. Isto é muito latino, da América do Sul, Espanha e Portugal. Creio que pouco a pouco se vai mudando esse centro de hegemonia na arquitetura.

E o que acha de Lisboa e Porto?

Gosto. São algo parecidas, mas o Porto agrada-me mais por ser de menor dimensão. E o rio é mais pequeno, está mais preparado para a escala humana. O aglomerado de Gaia, Porto e Matosinhos está muito bem. Gostei muito da reabilitação de um espaço industrial, um antigo armazém de vinhos [Real Vinícola] em Matosinhos, onde vai nascer a Casa da Arquitetura. Está muito bonito.

Esteve com Siza Vieira. O projeto de Siza em Granada, para o Alhambra, vai avançar ou não?


Pois, falei com ele sobre isso e parece que acha difícil. Mas ele é um corredor de fundo. Conhecendo-o como conheço, não daria essa causa por perdida.

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