segunda-feira, 5 de junho de 2017

A aventura da Santa Casa na banca


A aventura da Santa Casa na banca
António Costa
Ontem

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vai entrar numa aventura, isto é no capital do Montepio. Sem racionalidade económica, sem cabimento social, mas por interesse nacional. É a pior das razões.

“A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem como fins a realização da melhoria do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos, abrangendo as prestações de ação social, saúde, educação e ensino, cultura e promoção da qualidade de vida, de acordo com a tradição cristã e obras de misericórdia do seu compromisso originário e da sua secular atuação em prol da comunidade, bem como a promoção, apoio e realização de atividades que visem a inovação, a qualidade e a segurança na prestação de serviços e, ainda, o desenvolvimento de iniciativas no âmbito da economia social”. Este é o primeiro artigo dos estatutos da Santa Casa e é no mínimo questionável se permite a entrada da instituição no capital de um banco comercial, mesmo num banco com as características do Montepio.

As cartas, já percebemos, estão lançadas. Apesar de Santana Lopes ter garantido que não vai ‘meter’ a Santa Casa numa aventura, há uma espécie de consenso entre o governo – que tutela a SCML – e o Banco de Portugal, que supervisiona a Caixa Económica Montepio Geral, para esta operação. As razões invocadas, apenas oficiosamente e em conversas à porta fechada, são as piores: o interesse nacional. Importam-se de repetir? A Santa Casa vai arriscar um investimento – entre 150 e 200 milhões de euros por até 10% do capital – que nada tem a ver com a sua atividade por causa do interesse nacional. Será que já nos esquecemos todos do que sucedeu a muitas das empresas que mereceram a atenção do Estado, e os piores incentivos políticos, com as mesmas motivações? É mesmo preciso citar exemplos?

A Caixa Económica Montepio Geral é uma instituição de crédito, uma caixa económica de acordo com os seus próprios estatutos, não é uma misericórdia, nem sequer uma mutualista. Essa é a Associação Mutualista, a dona do próprio Montepio, que foi criado com um objetivo: libertar fundos para permitir que a Mutualista pudesse cumprir os seus objetivos sociais. Este negócio, a realizar-se, é uma perversão completa dos objetivos da Santa Casa e está em cima da mesa para resolver a necessidade de capital do Montepio sem pôr em causa a estabilidade da Associação Mutualista. Como?

A Associação Mutualista tem a participação no Montepio avaliada em 2,2 mil milhões de euros — a soma do capital social de 1,77 mil milhões com 400 milhões das unidades de participação, sendo o valor líquido de imparidades de 1,666 mil milhões — e, portanto, a entrada de um acionista privado no capital do banco a preços reais – e não artificiais – obrigaria a associação a ajustar o valor da sua posição acionista no seu próprio balanço. Como é fácil de ver, este ajustamento revelaria contas da associação que não estão devidamente refletidas. Daí a solução Santa Casa, decidida dentro de gabinetes.

A decisão de entrada da Santa Casa no capital do Montepio – ao qual não deverá ser estranho o mais recente movimento de subida súbita e não justificada do valor das obrigações do banco que estão cotadas e que, a propósito, vão ser transformadas em ações nas próximas semanas – é uma aventura. Em primeiro lugar, e mais importante, pela natureza do própria investimento, e agravada pelos riscos próprios do Montepio.

O Montepio precisa de capital, sim, e de novos acionistas, mas de outros acionistas, que tenham o perfil certo, que estejam disponíveis para investir na estratégia de José Félix Morgado, uma estratégia correta, mas que vai demorar tempo. Se correr tudo bem. O presidente do Montepio está a limpar o balanço, a cortar custos, a livrar-se do imobiliário, a diminuir a exposição ao mercado africano.

O Montepio não é um banco de cariz social, tem de ganhar dinheiro, assumir risco, sim, mas emprestar a quem pode devolver os empréstimos. A lógica de financiamento à economia social não é, neste sentido, para levar a sério, desde logo porque estas entidades do terceiro setor – fundamentais na nossa sociedade – têm de levantar dinheiro de outra forma, com o Estado, com contratos-programa, e com mecenas, por exemplo. Não é, seguramente, com crédito contraído na banca.


Portanto, a tese de que a Santa Casa vai entrar no Montepio por causa da economia social, e para a financiar, é uma falácia. Um pretexto mal escondido, e para isso basta analisar a estrutura de créditos concedidos pelo banco. Este negócio resulta de um interesse. Nacional, dizem.

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