domingo, 7 de maio de 2017

Almada era machista, racista e fascista? Ramada Curto sobre a exposição na Gulbenkian


Almada era machista, racista e fascista? Ramada Curto sobre a exposição na Gulbenkian

DIOGO RAMADA CURTO
06.05.2017 às 16h54

Almada total. Trabalhos do artista na exposição “José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno”, que reúne mais de quatrocentas obras, muitas delas inéditas e abrangendo todas as disciplinas artísticas a que se dedicou
A exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian levanta quatro questões sobre Almada e o modernismo
Com a centelha que se lhe reconhece, António Valdemar contou, há poucos meses, algumas pequenas histórias sobre Almada Negreiros e Paris (Expresso, 4-2-2017). Em "Paris Sempre", a narrativa de uma série de episódios permite esclarecer algumas das relações familiares, de amizade ou de ódio mantidas por Almada, bem como perceber, a uma nova luz, os compromissos ideológicos assumidos pelo mesmo. Um saber vasto, baseado na acumulação de memórias pessoais, como sucede com Valdemar, tem a vantagem de tornar concreto aquilo que, à primeira vista, parece abstrato. Historietas e anedotas permitem, pois, uma espécie de descida à terra, acabando por pôr o dedo na ferida. Tudo para salutarmente profanar domínios, constituídos pelas esferas do que é considerado estético e literário, as quais aspiram a ser colocadas num plano intocável da transcendência.

Ao inspirar-me no artigo de Valdemar, a minha intenção não é a de louvar ninguém. Nem Almada nem o próprio. Apenas pretendo aproveitar-me das historietas contadas por aquele, para refletir sobre quatro questões. E, neste exercício, não escondo ser o louvor o pior modo de prestar homenagem a alguém (Jorge de Sena dixit, segundo Onésimo Teotónio de Almeida, "Despenteando Parágrafos", Quetzal, 2015). A este respeito, sigo também o que disse Juan Goytisolo sobre Antonio Machado: não só o empenho em elevar o poeta aos cumes da perfeição não corresponde à realidade como querer estender o manto da sua grandeza, às suas muito discutíveis opiniões sobre vida e literatura, apenas serve para prolongar "a reverência beata e acrítica" dos seus admiradores ("Obras Completas", vol. VI).

1. Que relação teve Almada com África? Trata-se de uma questão básica, uma vez que Almada era meio-africano.

A sua formulação implica, também, perguntar, em termos mais genéricos: onde é que está a influência do "primitivismo" africano no modernismo português? Nascido numa roça em São Tomé de pai branco administrador colonial, escritor e jornalistae de mãe mulata nascida em São Tomé, mas de família roceira vinda de Benguela, Almada veio para Portugal com dois anos.

Através de diversos episódios contados por Valdemar, ficamos a saber que, em adulto, manteve sempre com o seu pai uma distância propositada, apesar de terem coincidido em Paris.

Numa outra situação, também são referidos os comentários racistas que Almada proferiu em relação a um dos seus inimigos, nascido em Cabo Verde, e a quem chamou "cor de café com leite" - Martinho Nobre de Melo, professor de Direito, ministro durante o Estado Novo e que veio a ser diretor do "Diário Popular". Sem querer entrar nas razões psicanalíticas que explicarão uma certa recusa das origens africanas de Almada, o que se afigura importante é discutir se a sua obra manteve com África uma relação de desinteresse. Um desinteresse de Almada, como já foi notado, extensivo aos artistas africanos e são-tomenses: Costa Alegre, poeta, Viana da Mota, músico, e Pascoal Viegas Vilhete, mais conhecido como "Canarim", pintor (António Ambrósio, "Almada Negreiros, Africano", Estampa, 1979).

Numa altura em que o primitivismo de matriz africana serviu de inspiração ao modernismo de Picasso e Modigliani, será que o fantasma africano de Fernando Pessoa, educado na África do Sul, foi simplesmente recusado por Almada? Ou poder--se-á dizer que a relação inexistente com o seu pai chega para explicar a quase ausência de África da obra do artista dobrado de escritor? De notar que o seu pai - estabelecido em Paris como jornalista e correspondente de "O Século", após a grande Exposição Universal de 1900, se casou com uma francesa, pois enviuvara da mãe dos seus filhos em 1896 - era autor de uma "Historia Ethnographica da Ilha de S. Thomé" (Lisboa, 1895) e de outros trabalhos sobre as ilhas e as colónias portuguesas. Os seus livros e artigos corresponderam ao início e estão bem no âmbito de uma das grandes discussões de âmbito internacional sobre as plantações de cacau e a mobilização de contingentes de mão de obra, em regime de trabalho forçado ou daquilo que era tido como escravatura moderna.

Ou seja, os anos que precederam o Orpheu (1915) foram de constante discussão em torno do projeto colonial português, muito em especial de São Tomé e de Angola, envolvendo sobretudo os modos de exploração das populações africanas. Conforme bem notou Rámon Gómez de la Serna, quando visitou Lisboa em 1915, em cartas para a sua tertúlia madrilena do Café Pombo: Portugal olhava para o mar e estava impregnado da riqueza das suas colónias. Aliás, quem tinha compreendido bem esta mesma situação teria sido o poeta Antonio Machado, ao escrever "Portugal es solo un pretexto para tener un pie en Europa" ("Obras Completas", vol. XX - Escritos Autobiográficos, Círculo de Lectores - Galaxia Gutenberg, 1998).

Há alguns, poucos, traços da presença ou da valorização de África, na obra de Almada que impõem um estudo sistemático sobre o tema (autorretrato parisiense, de 1919, na coleção de Amaral Cabral; capa satírica de Almada para o livro de Cunha Leal de ataque a Norton de Matos, desenhos da mãe sem data e de uma mulher num bar, números 385-387 da exposição da Gulbenkian). Porém, um dos principais contributos de Almada para a valorização da arte africana foi tardio e surgiu como resposta a uma iniciativa oficial. Data de 1934, na altura em que um dos intelectuais mais orgânicos do Estado Novo, António Mendes Correia, organizou no Porto uma Exposição Colonial, acompanhada de um colóquio sobre antropologia colonial. Neste mesmo ano, Diogo de Macedo editou um livro de algum aparato gráfico intitulado "A Arte Indígena Portuguesa", com capa de Almada, fotografias de Mário Novais, San Payo e Alvão.

As suas ideias acerca dos artistas e da arte indígena só são compreensíveis no interior de um projeto colonial português, racista, não podendo ser confundidas com uma orientação minimamente autónoma ou emancipada da cultura africana. Mesmo na década de 1930, Almada não saiu de perspetivas bem eurocêntricas e que endossam "como boa a lógica do imperialismo colonial" (como bem notou Gustavo Rubim, "A Promessa da Europa", in "José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno", Museu Calouste Gulbenkian, 2017). Talvez, por isso mesmo, ou seja, reproduzindo a omissão de escritores e artistas da época em estudo, José-Augusto França, em "Os Anos Vinte" (1992), quase não aborda temas relacionados com o império colonial, África e o racismo.

Conforme escreveu Macedo, no referido livro de 1934, depois de contar o modo como Picasso e Modigliani impulsionaram o gosto pelo colecionismo da arte africana: "Deixemos os pretos cultivar a sua arte com a sua especial significação social, étnica e até estética, para não lhes estragarmos a sua verdadeira razão de ser." O apelo à preservação de culturas tribais, diferentes, mas inferiores, afigurava-se bem diverso do que tinha sido assumido um quarto de século antes por Picasso, que se aproximou da retórica anticolonial usada por anarquistas e socialistas nos debates acerca da África francesa (Patricia Leighten, "The White Peril and L'Art Ne`gre: Picasso, Primitivism, and Anticolonialism", The Art Bulletin, 1990).

Que diferença, pois, entre a expressão tardia de Almada e o interesse, bem mais precoce, de Ramón de la Serna quando, em Lisboa, colecionava estatuária africana na Feira da Ladra e não só! Claro que tal interesse se conjugava no espanhol com várias considerações acerca das crianças negras de pé descalço que abundavam em Lisboa. Bem como de uma espécie de satisfação racista, ao constatar que Espanha era um país com poucos negros: "Não que os negros sejam maus, nem depreciáveis, de modo algum, mas é melhor assim, brancos, pobres e sós, e a cidade toma um aspeto mais puro." Coisa que, no seu entender, não sucedia em Lisboa ("Cartas desde Portugal Crónicas de El Día. Dos Viajes a Portugal" (1917-1918), ed. Maria Balmori, Madrid: Albert Editor, 2013).

Acrescente-se, ainda, que Macedo tinha andado por Paris, antes da Grande Guerra, onde conhecera Amadeu e Modigliani. E, numas memórias desses mesmos anos, que andam esquecidas, contou, sem pudor, a história dos bacanais, a que não terá só assistido, nesse mundo dos ateliês parisienses ("14, Cité Falguie`re", Seara Nova, 1930). Mas o certo é que Macedo estava, na altura da publicação do referido livro, numa trajetória que iria terminar no compromisso que assumiu com o Estado Novo. Dez anos depois, foi nomeado diretor do Museu de Arte Contemporânea.

2. No caso de Almada Negreiros, como pensar a relação entre a sua obra artística e as relações entre géneros? Uma das histórias contadas por Valdemar envolve a deslocação a Portugal, entre 1917 e 1918, da companhia dos Bailados Russos de Serguei Diaghilev e o impacto que tiveram em Almada os seus espetáculos em Lisboa. O mesmo impacto não poderá ser dissociado do contexto social lisboeta, em que se assistia a duas grandes discussões. Por um lado, tratava-se de um debate recorrente de carácter moral que atravessou toda a República e entrou pelo Estado Novo relativamente à vida depravada, à boémia e às relações dos patriarcas ou chefes de família com as suas respetivas amásias. De António Sérgio, nas páginas da revista "Águia" (1915), a Raul Brandão em "Vale de Josafat" (1933, mas revisto em 1928), encontram-se ecos de tal indignação moralizante, frente a uma espécie de dissolução dos costumes a que era urgente pôr cobro. Por outro lado, colocou-se o caso da homossexualidade de António Botto, defendida por Fernando Pessoa e Raul Leal, em "Sodoma Divinizada" (ed. Aníbal Fernandes, Babel, 2010), que foi objeto de um ataque feroz por parte de meios católicos, encabeçados pelos jovens Marcello Caetano e Pedro Teotónio Pereira (Zetho Cunha Gonçalves, "Notícia do Maior Escândalo Erótico-Social do Século XX em Portugal", Letra Livre, 2014).

Nesse mesmo contexto, interessaria perceber melhor a posição de Almada, que, em 1917, escreveu: "É preciso educar a mulher portuguesa na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens" ("Manifesto Futurista").

Que se veio a casar, em 1934, quando contava 41 anos de idade, com a grande pintora que foi Sarah Affonso, é um dado que interessará ter em linha de conta. Não só para perceber o que ficou para trás, enquanto experiências de uma juventude prolongada, como também para compreender as desigualdades que, de modo mais ou menos involuntário, acabaram por se impor na relação com a sua mulher.

Esta, depois de duas experiências de vida e de trabalho em Paris, na década de 1920, reconheceu não ter sido fácil continuar a pintar, dadas as obrigações que assumiu de dedicação à família e ao marido (Maria José Almada Negreiros, "Conversas com Sarah Affonso", Arcádia, 1982).

Mais do que um simples caso individual, determinado por um casamento ou uma relação a dois, não se constituirá Sarah Affonso em mais um exemplo de uma longa série, em que as mulheres são pura e simplesmente excluídas do campo artístico? Mais: até que ponto os movimentos ditos de vanguarda, do modernismo ao surrealismo, se caracterizaram por um recorrente modo de exclusão das mulheres do campo artístico.

Compreender esta mesma operação é tanto mais urgente quanto o panorama da pintura portuguesa do século XX veio a alcançar com Vieira da Silva e Paula Rego o máximo do nosso cânone. As referidas vanguardas parece que se configuraram como um modo de continuar a hegemonia dos homens, excluindo as mulheres, a ponto de se poder dizer que o modernismo continuou a impor as suas práticas bem patriarcais, não se tendo constituído numa rutura, pelo menos, em relação ao reconhecimento das mulheres artistas.

Atenção: ao procurar insinuar que existiu uma exclusão das mulheres do campo artístico, não adoto a corriqueira e sexista afirmação de que, na literatura portuguesa, de Eça ao neorrealismo, a mulher parece ter sido excluída. Foi o que defendeu Alçada Baptista, quando sustentou que "a mulher atingiu em Eça de Queirós o seu ponto mais baixo" e considerou que, no neorrealismo, a luta antifascista não concedia à mulher sequer o direito à pulsão sexual; rematando com uma bizarra formulação: "As letras portuguesas têm-se recusado a entrar no cerne do enigma da situação amorosa e têm-se limitado, nos seus melhores textos, a denunciar a sua incomodidade sem qualquer inovação (...), indesculpavelmente, a criação literária portuguesa parece ter-se limitado a glosar a cultura do sistema sem a pôr minimamente em questão" (Alçada Baptista, introdução a Almada Negreiros, "Nome de Guerra, Obras Completas, vol. II", Imprensa Nacional, 2ª ed., 1992).

3. Qual a relação entre o modernismo e a oposição à república ou a adesão ao fascismo? Eduardo Lourenço defendeu que Almada, apesar de tudo e a começar pelo ensaio "Direção Única" (1932), se afastou da "tentação fascista em que soçobrou o seu primeiro ídolo Marinetti"; porém, não deixou de limitar as excentricidades de Almada a um contexto bem preciso, quando escreveu "ele foi o escândalo que a época pedia e merecia" ("Almada, Ensaísta?", in "Obras Completas, vol. V", Imprensa Nacional, 1992). Também Gustavo Rubim vem agora sublinhar que Almada procurou a sua autonomia, teorizando em 1935 que "a primeira meta da Arte é a sua autonomia" (Gustavo Rubim, in "José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno", Museu Calouste Gulbenkian, 2017).

Numa perspetiva diferente, Alfredo Margarido e Manuel Villaverde Cabral vincaram que, no período entre as duas guerras, existiu uma correlação entre o modernismo literário-artístico e a formação de uma ideologia autoritária. E Valdemar veio, agora, insistir em elementos novos acerca da relação de Almada com Homem Cristo Filho, desde 1915, e da sua colaboração na revista "Ideia Nacional" (Miguel Castelo-Branco, "Homem Cristo Filho: Do Anarquismo ao Fascismo", Nova Arrancada, 2001).

Também no caso de Almada, existem ambiguidades a ter em conta que atenuam ou até contrariam a referida correlação. Eduardo Lourenço percebeu-as bem. Mas, é claro, não serão as mesmas ambiguidades extensivas ao caso de Ezra Pound, também ele uma personalidade excêntrica e fazendo constantes provocações? O certo é que, em Portugal, a partir de 1926, a tendência da ditadura e, depois, do Estado Novo para gerar consensos artísticos e intelectuais levou a uma espécie de absorção dos modernistas pelo regime. Resta saber até onde foi a cumplicidade ou colaboração dos próprios artistas e escritores. Muitos deles, por necessidade ou opção, não se fizeram nada rogados. António Ferro e, talvez ainda mais, os filhos da Ana de Castro Osório souberam bem gerir esse mesmo consenso, servindo-se das suas afinidades com o movimento modernista e exacerbando nele a dimensão do nacionalismo lusitano de que os ensaios de Almada estão pejados. Porém, poder-se-á sempre objetar que, na base de tal consenso, estava o simples facto de os artistas que não colaborassem com o Estado Novo ficarem sem ter de comer. Foi o que, em boa medida, sucedeu com Almada.

A propósito da receção do modernismo pelo Estado Novo, abro, aqui, um parênteses para contar uma pequena mas bem verídica história, ocorrida no início da década de 1960. Quem ma contou era, então, um menino que vivia em Arganil, no seio de uma família muito culta. Pelos meses de verão, era costume receberem a visita de monsenhor Moreira das Neves, que vinha na companhia de Eurico Dias Nogueira, primo da sua avó, uma espécie de delfim da nova geração eclesiástica. As visitas ocorriam quando os últimos se inteiravam que o pai, um grande latinista, leitor de português em várias universidades espanholas, vinha de férias. Moreira das Neves considerava-se, então, o grande divulgador de Fernando Pessoa e, de certo modo, do modernismo.

Eram horas e horas, a debitar e a declamar. Fazia sempre questão de ler o "Manifesto Anti-Dantas" de Almada, numa espécie de consagração dos seus dotes histriónicos. Tudo isto até era engraçado. Mas o menino, que tinha então nove, dez, onze, até talvez aos quinze anos, percebia muito bem o que ele queria dizer. Um belo dia, o pai esgotou a paciência. Nunca apreciara Fernando Pessoa. E, não se sabe bem a que propósito, atirou à queima roupa: - "Monsenhor, as ciências filológicas regem-se por outros critérios. Não são teologia e muito menos liturgia". A relação esfriou a partir dali e as visitas foram sendo cada vez mais espaçadas. Porém, no final daquele serão, sempre presidido pela avó, quando os eclesiásticos se retiraram, o menino comentou para o pai: - "Era escusado." Ao que o pai respondeu: - "Ó Maria de Lurdes, entrega o rapaz ao tio, que ainda chega a cardeal!"

4. Última questão: entre a circulação de estrangeiros por Portugal ou a simples importação de modelos estéticos e literários, qual a verdadeira experiência internacional de Almada? Valdemar refere a sua curta estada de um ano em Paris, entre 1919 e 1920, onde teve de trabalhar como bailarino, insistindo também no facto de que, até ao final da sua vida, se manteve a par do que por lá sucedia, nem que fosse com base na leitura da revista "Paris-Match". Almada representaria então uma espécie de Paris em Lisboa, ou seja, uma espécie de internacionalização por correspondência, superficial. Claro que se poderá sempre objetar que o próprio tinha consciência da estreiteza do terrunho.

Conforme declarou, numa conferência de 1926, intitulada Modernismo: "É viver o que é impossível em Portugal." Neste sentido, se deverá entender a experiência de Paris - onde o seu pai viveu e voltou a casar, mas onde pai e filho não se encontraram - e os cinco anos de vida e trabalho em Madrid, entre 1927 e 1932. Uma intenção de viver fora que Gómez de la Serna antecipou, em carta de Lisboa de 1915, quando se referiu aos jovens literatos, denominados "novos", como desejosos de se juntar à tertúlia do Pombo em Madrid ("O.C.", vol. XX).

Enfim, o ponto de vista defendido por Valdemar, com o qual concordo, corresponde bem às relações entre centros e periferias de produção artística e intelectual, nas quais Portugal e os seus agentes parecem ocupar posições de dependência. Ramón de la Serna que citou Blaise Cendrars para dizer que "a crítica de arte é tão imbecil como o esperanto" - , malgrado a consideração que tinha pelo "clarividente artista português Almada", só o referiu, a propósito de Picasso e da sua estilização de Pierrot, para falar da "sua obsessão de capricho frente à obsessão arlequinesca de Picasso" ("Obras Completas, vol. XVII Retratos Completos" (1941-1961), Círculo de Lectores Galaxia de Gutenberg, 2004).

De igual modo, no prefácio à "Leviana" (1929) de António Ferro, o escritor espanhol notou que as ruturas ocorridas no meio literário de Lisboa dependiam do que se passava fora de Portugal: "É importante perceber este apagar da memória na vida de Lisboa, por parte dos que têm a ambição de grandes talentos, dos grandes representantes das literaturas estrangeiras, dos emissários magistrais de alguma parte, para compreender o sentido da figura de Ferro, de uma persistência indutora, capaz de estabelecer uma rutura" ("Obras Completas, vol. XVI - Ensaios", Círculo de Lectores, 2005).

É evidente que a genialidade de Fernando Pessoa determinou a partir da sua descoberta pelo modernismo brasileiro, cuja importância foi, por sua vez, percebida a partir de 1920 por Cendrars e Marinetti - uma reversibilidade da geografia e de tais relações de dependência. Porém, no caso de Almada, por maior que seja o interesse que tenhamos na sua obra - incluindo o "polimorfismo" que lhe atribuía Pessoa em 1913 -, será sempre difícil apelar à mesma reversibilidade. Ou seja, com base em Almada, será difícil argumentar que o modernismo português não tenha sido marcado pela "dicotomia centro-periferia". E que seja, em alternativa, concebido em termos policêntricos, por fazer parte de uma "rede transnacional". Mais: Almada - tal como Pessoa, Ferro e muitos outros do modernismo - incorporaram bem tais dependências e, cada um à sua maneira, procurou ultrapassá-las, procurando contactos internacionais e alcançar perspetivas cosmopolitas.

Por isso, discordo do argumento principal que foi corajosamente proposto por Mariana Pinto dos Santos, curadora da grande exposição sobre Almada Negreiros, a decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian ("José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno", Museu Calouste Gulbenkian, 2017). Não ponho em causa que se trata de um argumento sedutor, por contrariar a ideia de um único centro de produção artística e literária, localizado em Paris, e procurar seguir vários modernismos.

Artistas e escritores, como Picasso e o próprio Blaise Cendrars, investiram na ideia de policentrismo. Este último fê-lo, por exemplo, publicando a "Anthologie du Nègre" (1921) e passando grandes temporadas no Brasil.

Porém, nem Amadeu nem muito menos Almada conseguiram escapar à ideia de um modernismo português periférico (Ellen Sapega, in "The Cambridge Companion to European Modernism", ed. Pericles Lewis, 2011). Considerar que eles alimentaram e participaram de relações em rede - que não correspondem às estabelecidas entre centros e periferias - é forçar a realidade, a bem da aplicação de uma teoria. Que só pode ser validada se se descontextualizar a produção artística da criação literária coeva e se esquecer o contexto social e político, do qual dependiam as possibilidades de existência de um público e de um mercado autónomos.

Tudo a bem da aplicação de uma teoria e de um conflito de gerações que abra espaço para a afirmação dos mais jovens.


A minha discordância em relação a um conceito e a uma teoria, porém, não afeta o que me parece mais importante. Ou seja, trata-se de uma exposição a não perder, acompanhada de um catálogo, cujos estudos são exemplo de uma bem organizada colaboração interdisciplinar, que nos ajuda a compreender melhor os pontos que aqui procurei formular.

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