quinta-feira, 27 de abril de 2017

Governo responde aos 20 mil que assinaram petição e garante que acordo Ortográfico é para manter / Governo responde aos 20 mil que assinaram petição e garante que acordo Ortográfico é para manter

Imagem / OVOODOCORVO

Eles abusaram e agora a língua é que paga
Do “inteletual” ao “óvio”, os disparates induzidos pelo acordo ortográfico são uma praga que veio para ficar.


NUNO PACHECO
27 de Abril de 2017, 7:30

Uma antiga e célebre canção brasileira, intitulada Você abusou e gravada em 1971 pelos seus autores, a dupla baiana Antonio Carlos e Jocafi (que já tem sido, por clamoroso erro, confundida com Antonio Carlos Jobim), diz a dado passo: “Se o quadradismo dos meus versos/ Vai de encontro aos intelectos/ Que não usam o coração como expressão”. Intelectos com CT, como se escreve e diz em português de qualquer continente, à semelhança de vários outros idiomas. Veja-se, por exemplo: intelecto (espanhol, galego), intellect (inglês, francês, holandês, luxemburguês, corso, frísio, havaiano), intellekt (alemão, dinamarquês, norueguês, sueco), intel-lecte (catalão), intleacht (irlandês), intelletto (italiano, aqui com o T dobrado em vez de CT), intellett (maltês, também com T dobrado), intelekt (albanês, bósnio, checo, croata, eslovaco, polaco), intelekts (letão), intelektas (lituano), intelekto (esperanto) e, na raiz de todas elas, intellectus (latim).

Pois há dias a agência Lusa emitiu uma notícia intitulada “Lenine Cunha eleito melhor atleta do mundo com deficiência inteletual”. Assim mesmo, sem C. No texto, a palavra intelectual vinha escrita correctamente, mas no título não. Sucede que a tal notícia foi publicada, sem correcção do erro, em vários órgãos de comunicação online (até no PÚBLICO, mas prontamente corrigida após escassos minutos de desatenção) e assim se manteve sem alteração, no mínimo nas 24 horas seguintes. Pelo menos nestes: Record, Sapo, Visão, TSF e WN.com. A RTP, honra lhe seja feita, publicou o título com a palavra corrigida e outros órgãos escolheram títulos diferentes, evitando o erro. Como fez a Rádio Comercial: “Lenine Cunha eleito melhor atleta paralímpico do ano.”

Pode dizer-se: gralha. Antes fosse. É, isso sim, resultado da estapafúrdia reforma ortográfica que nos tentam impingir há anos com resultados confrangedores. Dirão: mas o acordo está certo, não sabem é aplicá-lo. O sujeito do costume até dirá: “Leiam a nota explicativa, está lá tudo!” Pois. Mas o caso do acordo ortográfico é rigorosamente idêntico ao de certas ideologias. Dizem-nos que são boas, só que, azar dos azares, têm sido sempre mal aplicadas. Falso. É precisamente nas cartilhas “mal aplicadas” que reside a génese dos erros (e até crimes) em nome delas cometidos. O mesmo se pode dizer, até com benevolência, do chamado acordo ortográfico de 1990. O “inteletual” da Lusa não foi um erro passageiro. Antes dele, coligidos pacientemente no Facebook dos Tradutores Contra o Acordo Ortográfico, já tínhamos lido (com origem em vários documentos oficiais, jornais, comunicados, etc), “desenvolver o inteleto”, “festa inteletual”, “do seu inteleto”, “a cargo do inteleto”, “inteleto e caráter”, “capital inteletual”, “inteletual criativo”, etc. Isto e disparates idênticos, apenas pela supressão de consoantes a esmo: “pato” (por “pacto”). “frição”, “fatualmente”, “latose”, “otogenária”, “setuagenários”, “espetável”, “conceção [do visto]”. Foi a ideia de que a reforma do português se baseia na supressão de consoantes que levou, certamente, um funcionário aplicado a mandar escrever “exeto universidade” (por “excepto”) num sinal de trânsito há tempos colocado em Lisboa. E é essa mesma supressão de consoantes que leva várias pessoas a dizer “óvio”, “oviamente” ou até “corruto”. É óBvio que a esta guerra mal começou.

Claro que, dizem, se lessem a base explicativa, se conhecessem o acordo, nada disto sucederia. Verdade? Mentira! Os correctores (agora corretores, como os da Bolsa) dão sugestões díspares, as facultatividades e duplas grafias abundam, a ignorância suplanta o conhecimento e, somando tudo isto, erra-se. Muito. E vai errar-se mais. Por culpa das regras, porque estas estão pejadas de erros, e não apenas pela ignorância, cada vez maior, nesta matéria. É comum ouvirmos dizer, até por parte de pessoas muito rodadas na escrita (como alguns professores, inclusive catedráticos): “Parece que já não sei escrever português, cada vez tenho mais dúvidas.”

Voltando à canção de Antonio Carlos e Jocafi, ela diz: “Você abusou/ tirou partido de mim, abusou”. Pois foi, abusaram. Contando com a inércia de muitos e a credulidade de alguns. Mas não é demasiado tarde para inverter o rumo.

Governo responde aos 20 mil que assinaram petição e garante que acordo Ortográfico é para manter
Ontem 13:31

O Ministério dos Negócios Estrangeiros escreve que Portugal tem cumprido com as suas obrigações internacionais, o que se reflete no reconhecimento do país.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros escreveu um ofício, consultado pelo Expresso, onde refere que o Governo pode retirar e denunciar o Tratado do Acordo Ortográfico de 1990, ou suspendê-lo por tempo indeterminado, mas opta por não o fazer. O gabinete de Augusto Santos Silva argumenta que “Portugal vinculou-se ao Acordo Ortográfico na observação do princípio do livre consentimento, devendo cumprir de boa-fé as obrigações internacionais assumidas”.

“O Acordo Ortográfico está em plena aplicação, tendo sido tomadas as medidas necessárias à sua implementação; Portugal tem cumprido com as suas obrigações internacionais, sendo por isso mesmo internacionalmente reconhecido”, pode ler-se na carta a que o semanário teve acesso.

No início de fevereiro, em entrevista à TSF, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, afirmou que existem “sugestões de aperfeiçoamento” do Acordo Ortográfico atualmente em vigor. No entanto, as mudanças ainda não serão postas em prática, tendo em conta que “é preciso que os especialistas as discutam”.

A petição pública Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, que se opõe ao documento, conta com 20.715 assinaturas e já foi entregue ao Parlamento. Os subscritores defendem que a língua é um “património valioso” e um “instrumento determinante para a afirmação dos povos e das suas culturas”. “Não pode, por isso, ser prisioneira de imposições do poder político, que limitam a sua criatividade natural”, realçam os críticos.


Entre os milhares de assinantes, muitos são personalidades célebres em Portugal, como António Lobo Antunes, António Arnaut, Eduardo Lourenço, Irene Pimentel, Isabel Pires de Lima, Júlio Machado Vaz, Maria Filomena Mónica, Mário Cláudio, Miguel Real, Miguel Tamen, Pedro Mexia, Pedro Tamen, Raquel Varela, Richard Zimler, Rosado Fernandes, Valter Hugo Mãe, António Lobo Xavier, Manuel Alegre, Mendes Bota, João Bosco Mota Amaral, José Pacheco Pereira, Paulo Morais, Paulo Teixeira Pinto, José Ribeiro e Castro, Vítor Ramalho, Garcia dos Santos, Sanches Osório, Vasco Lourenço, António Barreto, Boaventura de Sousa Santos, Diogo Leite de Campos, João Ferreira do Amaral, Manuel Monteiro, Teresa Pizarro Beleza, Adelino Gomes, Bruno Prata, Fernando Dacosta, Júlio Isidro, Henrique Garcia, Maria João Seixas, Miguel Esteves Cardoso, Vicente Jorge Silva, Lídia Franco, Luís Aleluia, Maria do Céu Guerra, Pêpê Rapazote, Júlio Pomar, Jorge Martins, Camané, Carlos do Carmo, Fernando Tordo, Jorge Palma, Manuel Freire, Pedro Abrunhosa, Pedro Barroso, Rui Veloso e Sérgio Godinho.

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