quarta-feira, 8 de março de 2017

Um director com défice de legitimidade / Associação de Estudantes da FCSH denuncia ameaças da extrema-direita / Vinte e quatro palermas e um director medroso

EDITORIAL/ PÚBLICO

Um director com défice de legitimidade

Pior do que um grupo de extremistas querer coarctar a liberdade de expressão é haver uma faculdade a dar-lhe aval.

MANUEL CARVALHO
9 de Março de 2017, 6:20

O Presidente da República espera por “esclarecimentos” sobre o cancelamento da conferência de Jaime Nogueira Pinto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, mas, enquanto espera, fez o diagnóstico rápido do problema e foi lesto a sugerir a respectiva terapia: a demissão do director da faculdade. Que haja uma associação deslumbrada pelo radicalismo que se arroga o direito de dizer quem pode ou deve falar numa universidade é já por si uma doença a exigir cuidados; mas haver um director de uma escola pública onde se ensinam ciências sociais e humanas que aceite essa arrogância e a proteja com o seu beneplácito é algo que só se remenda com a demissão.

Marcelo Rebelo de Sousa teve o mérito de falar grosso sobre esta inaceitável situação, e, se o fez querendo cobrir o seu estatuto com o pedido de “esclarecimentos” que o salvaguardam dos riscos do julgamento sumário, não deixou de dizer o que tem de ser dito. “Eu não entendo como é que um responsável de uma instituição pública toma uma decisão daquelas”, disse o Presidente. Nem ele, nem ninguém. Porque se um atropelo à liberdade de expressão e de pensamento é sempre acontecimento que merece censura, tolerar a sua prática numa universidade do Estado implica o Estado na sua consumação. Algo que um director jamais poderia permitir.

Se o Presidente da República é “o guardião dos direitos constitucionais”, como tratou de recordar, não pode ficar calado. Se o director da faculdade (ou o reitor) é responsável pela formação de jovens no quadro dos princípios, direitos e deveres que a Constituição prescreve, não pode ficar incólume à violação que legitimou – mesmo que tenha havido ameaças. Haver um grupelho radical com força suficiente para calar opiniões que, sendo bafientas e ressumam um passado odioso, têm direito de cidade e de impor a sua intolerância a uma direcção legítima mostra uma espécie de mundo ao contrário que não se pode aceitar. Um “absurdo”, disse, e bem, o Presidente.

O ministro da Ciência telefonou para exigir garantias e Marcelo já disse o que se deve passar: o director da faculdade deixou de ter condições para o ser. Quem troca valores por medo não tem valor algum para os promover numa escola. E para que este triste caso se apague e o bom exemplo prevaleça, têm a palavra os estudantes: sentem-se bem representados por uma clique de esquerda com tiques de Salazar?

Associação de Estudantes da FCSH denuncia ameaças da extrema-direita
Associação afirma ter recebido ameaças de cerca de 40 pessoas ligadas à extrema-direita.

LUSA 8 de Março de 2017, 23:59

A Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa denunciou esta quarta-feira, em comunicado, ameaças de cerca de 40 pessoas ligadas à extrema-direita.

"Na terça-feira, a direcção da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (AEFCSH) da Universidade Nova de Lisboa foi invadida por quatro dezenas de indivíduos afectos à extrema-direita, que se identificaram como tal", refere.

Segundo a associação, numa atitude "claramente intimidatória", as pessoas exigiram conhecer individualmente alguns membros da AEFCSH. "A par desta iniciativa, as fotos de alguns dirigentes associativos foram publicadas em redes sociais da extrema-direita, sendo que as 40 pessoas prometeram voltar em maior número às instalações da AEFCSH", sublinha.

Os estudantes daquela faculdade decidiram na segunda-feira em Reunião Geral de Alunos não ceder o auditório à organização Nova Portugalidade para a realização de uma conferência do politólogo Jaime Nogueira Pinto sobre Populismo ou Democracia? O Brexit, Tump e Le Pen em debate. Alegaram que o evento estava "associado a argumentos colonialistas, racistas, xenófobos".

No comunicado, a AEFCSH salienta que "nunca procurou impedir a existência de debate político, nem a presença do professor Jaime Nogueira Pinto na faculdade". "A direcção da AEFCSH limitou-se a dar seguimento a uma decisão da Reunião Geral de Alunos que a mandatou para não ceder o auditório pedido pela organização Nova Portugalidade. Esta organização tem um perfil salazarista e a direcção da AEFCSH revê-se na preocupação estudantil à qual ficou vinculada na Reunião Geral de Alunos", refere.

No comunicado, a associação explica também que só teve conhecimento da decisão de anular a realização da conferência pela comunicação social. A AEFCSH termina a afirmar que "não se deixará intimidar pela presença e ameaças de nenhum grupo de extrema-direita" e que "não tem medo do debate livre, que nunca impediu e que continuará a promover na faculdade, assim como os valores democráticos pelos quais se rege".

Este caso causou polémica, a ponto de o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ter pedido esclarecimentos sobre o cancelamento da conferência, que motivou críticas e levou até a Associação 25 de Abril a disponibilizar as suas instalações para Nogueira Pinto fazer a palestra.

PNR convoca protesto
Esta quarta-feira ficou também a saber-se que o Partido Nacional Renovador (PNR) convocou para o dia 21 um protesto em frente à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa "contra o totalitarismo do pensamento único e pela liberdade de expressão para todos".

"Ao menos, que estes casos mediáticos que já afectam João Braga e Jaime Nogueira Pinto sirvam para despertar mentes e consciências. E que, uma vez despertas, percebam que só o PNR luta verdadeiramente contra o totalitarismo do pensamento único", refere o partido na convocatória divulgada na sua página na Internet.

O fadista João Braga escreveu na semana passada na sua página do Facebook "Agora basta ser-se preto ou gay para ganhar Óscares", referindo-se à cerimónia de entrega de óscares em Hollywood. A afirmação gerou polémica e levou a associação SOS Racismo a apresentar queixa à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial.

Pressão dos estudantes trava organizadores de conferência com Nogueira Pinto
Associação 25 de Abril disponível para receber conferência de Nogueira Pinto cancelada na Nova
Na convocatória, o PNR salienta que "sempre sentiu na pele a discriminação, o boicote, a censura e a ameaça por parte dos donos do poder estabelecido". "Quando alertámos, centenas de vezes, que esta era a realidade no Portugal do século XXI, a maioria daqueles que nos ouviam 'sacudia a água do capote' e dizia-nos que era por sermos 'extremistas', apenas por fazermos a diferença, pensarmos de modo diferente e dizê-lo sem medo", refere.


Para o PNR, com o "crescimento nacionalista no Ocidente, a esquerda, que domina o sistema, que dita as regras e que impõe o marxismo-cultural, começa a ficar nervosa e a endurecer a luta. É ela quem define os conceitos, decide quem pode ter voz, o que é certo e errado e criminaliza quem se lhe opõe".


Vinte e quatro palermas e um director medroso

À deserção cívica e ao desprezo pela liberdade de expressão junta-se a cobardia intelectual. A liberdade na FCSH está a ser vendida a um preço demasiado baixo.

João Miguel Tavares
9 de Março de 2017, 6:43

Comecemos por relativizar as coisas: foram 24 estudantes. Não foram 2400, nem 240. Foram 24. Vinte e quatro tontos que numa RGA na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas votaram favoravelmente uma moção que exigia o cancelamento da reserva de sala onde se iria realizar a conferência de Jaime Nogueira Pinto. Como é que 24 pessoas conseguiram tal coisa numa faculdade que tem quase cinco mil alunos? Simples: participando numa RGA onde, pelos vistos, só havia membros da associação de estudantes e seus amigos. Como a inexistência de quórum não impede a tomada de decisões, 0,5% dos alunos da FCSH conseguiram desprestigiar uma faculdade inteira e inaugurar em Portugal a censura de esquerda nos meios universitários. Primeira lição a tirar deste caso: a deserção cívica é o primeiro passo para os extremistas imporem a sua lei.

Segundo lição a tirar deste caso: a luta pela liberdade de expressão é um dos combates mais sérios e necessários dos nossos dias. Aquilo que se está a fazer em nome de uma agenda progressista é promover o exercício da censura nos espaços que nasceram para estimular o debate intelectual livre. Ler a acta da RGA que impediu Nogueira Pinto de falar, o conteúdo da moção que foi aprovada e a subsequente justificação da associação de estudantes é chocante, desde logo porque encaixa como uma luva na vergonhosa cultura dos trigger warnings e atenta contra a mais básica lição de John Stuart Mill: silenciar uma opinião é roubar a humanidade do seu mais valioso património, pois se essa opinião estiver certa perdemos uma oportunidade de corrigir a nossa própria opinião, e se essa opinião estiver errada perdemos uma oportunidade de denunciar a sua falsidade.

Numa das primeiras justificações que apresentou para a sua decisão censória, a associação de estudantes da FCSH afirmou esta coisa extraordinária: “Por sermos, efectivamente, uma universidade onde a liberdade de pensamento e o pensamento crítico são promovidos, não compactuamos com eventos apresentados como debates sob a égide de propaganda ideológica dissimulada de cariz inconstitucional.” Que é como quem diz: promovemos a liberdade de pensamento e de crítica desde que as pessoas pensem como nós. Ora, estes estudantes, tão preocupados com o fascismo e com a “inconstitucionalidade” do grupo que promoveu a conferência de Jaime Nogueira Pinto, está a decalcar a argumentação inscrita na Constituição fascista de 1933. Também ela garantia “a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma”, exceptuando aqueles “factores que desorientem contra a verdade, a justiça, a moral e o bem comum”. É por isso que extrema direita e extrema esquerda são duas faces de uma mesma moeda: uns gostam de Salazar, outros copiam os seus métodos.

Mas nada disto teria sido possível sem o lastimável papel do director da FCSH. Receoso de que o evento pudesse “desviar-se para extremos que não interessam”, Francisco Caramelo deixou cair a conferência, prometendo que “chegará o momento em que a instituição, no quadro de um debate mais alargado, considerará oportuno” voltar a convidar Jaime Nogueira Pinto. Esta é a terceira lição a tirar do caso: à deserção cívica e ao desprezo pela liberdade de expressão junta-se a cobardia intelectual. É uma vergonha ver o director de uma faculdade portuguesa deixar espezinhar o direito ao debate livre e ao exercício da palavra para evitar empurrões e insultos. A liberdade na FCSH está a ser vendida a um preço demasiado baixo.

Sem comentários: