terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Ai, Cais do Sodré, já todo o sapato te serve no pé?


Ai, Cais do Sodré, já todo o sapato te serve no pé?
Estão quase a acabar as obras de requalificação do Cais do Sodré, que segundo a câmara serviram para abrir a frente ribeirinha à “fruição pública”. Há mais passeios, mais árvores, menos carros, muitos elogios. A má fama do Cais vai desaparecer de vez?

JOÃO PEDRO PINCHA 13 de Fevereiro de 2017, 7:30

Cacilhas, ali ao fundo, tenta piscar o olho por entre a neblina que se abateu sobre o rio. E conseguiu captar a atenção de um homem, pelo menos enquanto a chuva que há horas se adivinha não desce do céu aos trambolhões, como tem sido costume. José Manuel, 79 anos, comeu a bucha que trouxe de casa num dos novos bancos de madeira colocados junto ao Tejo, que até têm espaço para esticar as pernas. Depois veio postar-se aqui na amurada, a centímetros do rio, com o olhar perdido na Outra Banda.

Já lhe conhece as formas de cor. Há vários anos que sai de casa logo de manhã e vem por aí abaixo, desde o Largo do Rato até à beira-Tejo, só para passar o tempo. “Põe-se as ideias em dia, está-se descansadinho, ninguém chateia”, diz, boina na cabeça e casaco apertado, que as ondas provocadas pela passagem dos cacilheiros podem ser manhosas. “Uma grade aí não era má ideia.”

É a única imperfeição que vê no novíssimo Cais do Sodré, onde as obras estão praticamente concluídas. Apesar de agora estar de costas voltadas para a praça, José Manuel andou a passear e gostou do que viu. “Já tem outras condições. Está-se mais à vontade, isto está mais airoso, mais livre.” As frases saem acompanhadas de gestos largos com os braços, logo seguidos de outros mais contidos. “Antigamente aqui era uma mata, tinha barracas, agora está muito mais limpinho”, diz.

As mudanças no Cais do Sodré foram significativas. Logo atrás da amurada em que José Manuel está sentado havia um espaço alcatroado onde os carros estacionavam desordenadamente no meio de bancos de plástico coloridos e enfeitados com oliveiras. Esse local está agora calcetado e tem os tais bancos de madeira onde José comeu uma sandes. Mas mais: reduziu-se o número de vias de trânsito, acabou-se o parque de estacionamento em frente à estação, alargaram-se passeios, mudaram-se paragens de autocarros, plantaram-se novas árvores.

“Foram meses difíceis, sem dúvida nenhuma”, desabafa Teresa, que tem uma loja de artigos turísticos na esquina da Praça Duque da Terceira com a Rua do Alecrim. “Mas está bonito”, acaba por dizer. Deste lado do largo, oposto àquele onde encontrámos José Manuel, o único vestígio visível de obras é uma cabine azul, colocada a menos de um metro da estátua do duque – limpa há dois anos, já precisa de nova lavagem.

Em frente à loja de Teresa o passeio foi muito alargado. “É óptimo, parece a Rua Augusta”, atira a empresária a rir-se, atrás do balcão onde vende imagens de Nossa Senhora de Fátima fluorescentes, ímanes de eléctricos 28 e outra parafernália de encher o olho aos turistas. Há trinta anos no Cais do Sodré, Teresa suportou os incómodos das obras com algum cepticismo. “Estava com receio que descobrissem alguma coisa, alguma taça enterrada, e isto ficasse para aí tudo embargado. Tive dias em que estava dentro da loja retida, ninguém entrava nem saía”, relata.

“Mas já passou, está muito bonito, está muito amplo. Até o trânsito flui melhor”, acrescenta. Ainda assim, para o negócio, ainda não é a altura certa para tirar conclusões. Janeiro e Fevereiro são meses de pouca procura, explica, pelo que será preciso esperar um pouco mais para saber se o passeio mais largo trará vantagens. “A partir de Março já se começa a ver. E espero que agora, com aquilo arranjado junto ao rio, as pessoas não deixem de passar por aqui.”

Uma "magnífica obra"
Apesar de Teresa dizer que Fevereiro é um mês fraco em termos turísticos, por estes dias difícil é encontrar portugueses no Cais do Sodré. À espera de um autocarro 758 está Joaquim, cinquenta e poucos anos, que ficou surpreendido com o cenário que encontrou. “Passam-se anos sem que venha cá. Isto era um problema para a gente atravessas, vir para aqui, apanhar autocarros. Como está agora, está muito melhor”, afirma.

Outro Joaquim, este taxista, também está agradado com o resultado final dos trabalhos. Mas teme que o trânsito não melhore. “Nas horas de ponta vai continuar a ser complicado”, vaticina, encostado à entrada da estação fluvial. Para ele, “as pessoas trazem cada vez mais os próprios carros para Lisboa”, o que está na origem dos engarrafamentos que entopem toda esta zona diariamente.

Por isso, Joaquim duvida da eficácia de certas opções da câmara municipal nesta intervenção. “Em vez de porem mais vias, tiram-nas?”, questiona incrédulo. Tirar carros do centro e abrir este espaço à “fruição pública por todos os munícipes” é um dos objectivos assumidos por Fernando Medina para toda a frente ribeirinha: Cais do Sodré, Praça Duque da Terceira, Largo do Corpo Santo e Campo das Cebolas.

É por isso, aliás, que a Rua Bernardino Costa -- que liga a Rua do Arsenal ao fim da Rua do Alecrim, passando pelo Corpo Santo – está com uma só via de trânsito, passeios alargados e lojistas contentes. Pelo menos a avaliar pelo que dizem Ilda e Luís Gonçalves, donos da Tabacaria Britânica, que se deram ao trabalho de pendurar um cartaz no gradeamento das obras. “A Britânica dá os parabéns a todos os trabalhadores desta magnífica obra”, lê-se.

Será ironia? Nem pensar, responde o casal em uníssono no estabelecimento onde vendem lotarias, jornais e tabacos. “É notável a dedicação do pessoal”, afirma Luís. “Nunca vi trabalhar como estes trabalhadores”, diz Ilda. Desta casa, só elogios. “A rua [estava] toda irregular, as pessoas tropeçavam, espalharam-se aqui várias vezes à nossa porta”, conta Luís, voz grave e calma a tecer loas à intervenção: “Valeu a pena, está bonita e funcional. Está airoso, as pessoas andam livremente.”

Mas, e há finalmente um mas, alguns comerciantes estão a aproveitar os passeios mais largos para esticar as bancas de fruta, de ímanes e quejandos. “Ocupam o passeio com o negócio, os peões ali ficam. Há que disciplinar isso para que as pessoas possam circular livremente sem aquela feira de expositores no caminho”, diz Luís Gonçalves.

Amante de fado, Luís cantarola uma canção de Rodrigo: "Ai Cais do Sodré, ai Cais do Sodré, nem todo o sapato te serve no pé". Uma realidade que, afirma, está a mudar rapidamente. Ele agora passa grande parte do tempo a gerir um turismo rural em Grândola e diz que se surpreende sempre que vem a esta zona da capital, mal afamada e mal frequentada durante muitos anos. “É bom vir a Lisboa. Anda-se aqui tranquilamente, não há receio, não há violência.”

Ilda Gonçalves tem um receio. “Tenho muito medo que os grafitis venham e estraguem isto tudo.” Na sexta-feira, os raros trabalhadores que ainda andavam pela obra estavam precisamente a lavar um dos novos muretes do jardim, onde alguém já tinha escrito umas palavras com spray preto.

Despedimo-nos da Britânica com a promessa de lá voltar mais tarde, para ver como param os fados. O céu está mais carregado, Cacilhas mais longe. José Manuel já foi para casa.



Sem comentários: