segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Queremos ver Portugal a arder


Queremos ver Portugal a arder
JOÃO MIGUEL TAVARES 09/08/2016 – PÚBLICO

Os estudos não enganam. Isto não é azar geográfico nem altas temperaturas. É mesmo uma profunda incompetência política.

Há cerca de um ano foi divulgado um estudo da União Europeia sobre incêndios nos países da bacia do Mediterrâneo que continha números impressionantes. Foram analisados dados de 2000 a 2013 de Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia. Nesse período 53,4% de todos os incêndios haviam ocorrido em Portugal. Ou seja, o nosso país tinha maior número de incêndios do que Espanha, França, Itália e Grécia juntas. Em termos de área ardida, o número baixava para 37,7%, mas como a Portugal corresponde apenas 14,7% do território em causa, o resultado é este: temos 3,5 vezes mais incêndios do que a média dos países mediterrânicos e 2,5 vezes mais área ardida. São números que deveriam envergonhar qualquer português. E, no entanto, não me recordo de esse estudo ter tido alguma repercussão significativa em termos políticos ou mediáticos, e eu próprio só dei por ele porque ontem já não conseguia suportar mais labaredas à hora do almoço e pus-me a pesquisar.

A falta de seriedade com que nós enfrentamos os problemas da floresta portuguesa só tem paralelo na histeria que toma contas das televisões assim que, para citar Quim Barreiros, entra Agosto. Há mais de dez anos que se fala em auto-regulação das televisões, por uma razão muito atendível: estimando-se que um quarto dos incêndios tem origem criminosa e estando comprovado que os pirómanos se entusiasmam com a sua cobertura, o festim de chamas serve de alimento a futuros fogos. Ontem, todos os canais abriram os noticiários da hora de almoço com os incêndios, o que é compreensível tendo em conta a gravidade da situação, mas depois pus-me a olhar para o relógio, num daqueles exercícios que a ERC muito aprecia: a RTP terminou a cobertura dos fogos às 13.20; a CMTV às 13.15, mas depois voltou às 13.31 e arrastou um directo até às 13.43; a TVI às 13.31; e a SIC às 13.34. Sendo costume os jornais do almoço duraram uma hora, a cobertura dos incêndios em Portugal está como os fogos: mais de metade dos noticiários de Agosto são ocupados por chamas, chamas e mais chamas.

O meu problema, claro está, não tem a ver com a questão dos incêndios, que é um excelente tema jornalístico. Está na transformação do repórter num mero recolector de lágrimas e labaredas. Os 34 minutos de incêndios no Primeiro Jornal da SIC não são ocupados a questionar responsáveis ou a discutir o que está a falhar no combate e na prevenção. O grosso da cobertura é floresta a arder, e quanto mais próximo de casas maior o dramatismo e mais estúpidas as perguntas do repórter. A próprio pivot vai lançado os directos com comentários tão argutos quanto “este é mesmo um combate desigual…”, e do outro lado confirma-se que sim, que é um combate desigual, e depois a senhora Maria pergunta onde estão os bombeiros, e o senhor Manel pergunta porque é que ninguém limpa as florestas.

Para o ano, já se sabe, há mais. Ora, o que eu gostaria de ver era menos a senhora Maria e o senhor Manel, e mais um bom debate televisivo com todos os ministros do Ambiente e ministros da Administração Interna (António Costa incluído) que ocuparam os cargos entre 2000 e 2013, para nos explicarem devagarinho porque é que falhamos há tantos anos em matéria de incêndios e porque é que tudo indica que vamos continuar a falhar. Os estudos não enganam. Isto não é azar geográfico nem altas temperaturas. É mesmo uma profunda incompetência política, muito mais árdua de combater do que o pior dos fogos.

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