quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Burkini não, obrigada


Burkini não, obrigada

Em praias francesas decidiram interditar o burkini – que deveria chamar-se ‘burbanho’, porque de bikini não tem nada

24 de agosto 2016

Imagine a leitora ou o leitor que, numa situação de tortura, o carrasco lhe pergunta: prefere levar dois pares de estalos ou fazer um jogo de vólei na praia, debaixo do sol de Verão, com um fato preto a cobri-la/o da cabeça aos tornozelos?

A situação é caricata, antes de mais por inverosímil: na tortura, não há escolha – embora possa haver simulacros de escolha que constituem, em si mesmos, um requinte suplementar de tortura.

O caso clássico da perversão da liberdade de escolha numa forma de tortura continuada é o de A Escolha de Sofia (romance de William Styron, filme de Alan J. Pakula), em que um soldado nazi força uma prisioneira de um campo de concentração a seleccionar um dos seus dois filhos pequenos para ser morto; caso a mãe se recusasse a escolher, mataria os dois.

Sofia decide a sobrevivência de um dos filhos (o rapaz, claro; esta escolha, que o dia-a-dia das relações entre mães e filhos ou filhas tantas vezes confirma, seria um tema correlativo deste) e vive o resto da vida torturada pela culpa.

Não tenho dúvida de que preferiria que me aplicassem uns estalos a que me obrigassem a correr à torreira do sol metida num escafandro.

Quando vemos uma pessoa a bater noutra, sabemos que se trata de uma situação de violência. Mas a imagem de um par de jogadoras de vólei egípcias naquela fatiota torturante disputando a bola sobre a rede a um par de jogadoras alemãs em bikini correu mundo como glorioso postal do multiculturalismo, da diversidade e da tolerância.

A mim, essa imagem choca-me: o corpo das atletas egípcias é feito da mesma carne que o de qualquer um de nós. Os donos de escravos também alegavam que a capacidade de sofrimento dos negros era diferente da dos brancos.

O islamismo fundamentalista entende que a mulher é um ser ontologicamente diferente do homem, uma criatura cujo corpo promove o pecado e que por isso esse corpo deve ser socialmente apagado. Em 2016, muitas décadas depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estas considerações não são admissíveis, e não deveriam ser acatadas pelo Comité Olímpico.

Há meia-dúzia de anos, a Federação Internacional de Natação decidiu proibir uns fatos de banho ‘milagrosos’ que ajudavam a aumentar a velocidade, a flutuabilidade e a resistência dos atletas, a bem da igualdade de condições entre todos os participantes nas competições. Por que é que os códigos de equidade na indumentária competitiva não se aplicam do mesmo modo em todas as modalidades?

O argumento apresentado de que o uso daqueles trajes foi ‘escolha’ das atletas egípcias (aliás, de uma delas; a outra teve de se conformar a acatar a ‘escolha’, pelos vistos mais válida, da parceira) não colhe.

Se um atleta não pode escolher roupa que lhe amplie as capacidades, também não deve poder escolher roupa que lhas diminua.

Mas a questão vai mais fundo, e é a seguinte: só se pode falar de escolha quando se parte da liberdade.

Pergunto-me que liberdade de decisão sobre o seu corpo tem uma mulher criada e educada nos preceitos do Islão, à qual desde o nascimento foi dito que uma mulher destapada é uma pecadora destinada à condenação eterna, e que, se o fizer, será, no mínimo, repudiada pela família.

Na Europa, a discriminação de género não é admissível.

No entanto, o jornal francês Libération publicava há dias uma reportagem em que revelava existirem em França, hoje, cerca de 50 mil mulheres vítimas de mutilação genital.

No início de agosto, uma associação de mulheres muçulmanas tentou alugar um parque aquático do sul de França para realizar nele o ‘dia do burkini’, um dia em que só mulheres nesse traje poderiam frequentar o parque, que seria interdito aos homens e às crianças do sexo masculino com mais de dez anos. Uma mãe com um filho de onze anos já não poderia levá-lo consigo para esse excepcional banho.

Poucos dias depois, várias praias francesas decidiram interditar o uso do burkini – que deveria chamar-se, vá, ‘burbanho’, porque de bikini não tem nada.

Disse Laurence Rossignol, ministra francesa dos Direitos da Mulher : «O burkini não é uma nova linha de swimwear, é a versão de praia de uma burka e tem a mesma lógica: esconder os corpos das mulheres para que possam ser controladas. O burkini tem um objetivo. Esse objetivo é dissimular, esconder os corpos das mulheres para esconder as mulheres, e o lugar em que isso coloca as mulheres é um lugar que eu combato, que outros antes de mim combateram, e que tem algo de profundamente arcaico».

Manuel Valls, o primeiro- ministro francês, explicou ao jornal La Provence que o burkini «é a tradução de um projeto político, de contra-sociedade, fundado nomeadamente na subserviência da mulher», acrescentando: «Há a ideia de que, por natureza, as mulheres seriam impúdicas, impuras, e que portanto deveriam estar completamente cobertas. Isso não é compatível com os valores da França e da República». Valores, oui.

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