quarta-feira, 30 de março de 2016

Em Molenbeek recrutadores actuam como "traficantes à porta da escola"

OPINIÃO
O Daesh cresce no multiculturalismo de gueto na Europa
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 29/03/2016 - PÚBLICO
Não será surpreendente se o Daesh e outros grupos islamistas-jihadistas continuarem a crescer no interior das sociedades europeias. O terrorismo é a sua arma política. O gueto o seu habitat.

1. A discussão sobre as razões mais profundas do terrorismo reemerge sempre que há um novo atentado. As explicações são muito variadas e reflectem diferentes visões do mundo. Alguns apontam causas de tipo político-militar: as intervenções militares do Ocidente no Iraque, na Líbia, a guerra da Síria, ou a questão da Palestina. Outros sublinham causas de tipo económico-social: a pobreza generalizada do Sul do Mediterrâneo face ao Norte, com uma população jovem e sem perspectivas de futuro. Em qualquer discussão abrangente do problema, estas explicações merecem uma reflexão séria. Mas o que pretendo aqui efectuar é uma análise mais restrita. Após os atentados terroristas do 13/N em Paris e 22/M em Bruxelas, começou a emergir um padrão relativo ao perfil dos seus autores, que já era discernível noutros atentados anteriores. Homem, jovem, de nacionalidade europeia, com origens familiares fora da Europa, tipicamente no Sul do Mediterrâneo, criado ou exposto a um ambiente cultural e / ou religioso islâmico, vivendo num gueto nos subúrbios de uma grande cidade europeia. É sobre esta faceta da questão que vai incidir a análise.

2. As sociedades europeias / ocidentais são hoje muito diversas face à realidade de há meio século atrás. Abandonaram a ideia de uma cidadania culturalmente homogénea, a qual foi substituída por uma cidadania multicultural. O ideal é apreciável, especialmente face aos excessos nacionalistas do passado e a modelos de cidadania pouco inclusivos. Parece em sintonia com a diversidade do mundo globalizado. Mas enfrenta um problema delicado. Entre as elites políticas, empresariais, académicas e artísticas emergiu uma cidadania cosmopolita e multicultural. Na grande maioria da população a ideia não teve ressonância. O principal quadro de referência continua a ser o Estado-nação, como se viu na crise da Zona Euro. Há, ainda, um terceiro grupo, de crescente dimensão, onde esta cidadania multicultural também não criou raízes. Esse grupo é a da população oriunda de migrações não europeias, em especial do mundo árabe-islâmico a Sul do Mediterrâneo. Em partes substanciais, vive numa lógica de gueto, fechada sobre si própria, afastada da sociedade dominante, quer no espaço físico — tipicamente nos bairros pobres da periferia das grandes cidades, ou nos centros históricos degradados —, quer culturalmente. Não partilha dos valores seculares pós-modernos estruturantes da sociedade envolvente.

3. Estamos perante uma realidade nova da modernidade europeia. É verdade que a existência de grandes clivagens económicas e sociais não é novidade na história europeia. Os guetos de proletários miseráveis também são bem conhecidos. Após a revolução industrial e o triunfo do capitalismo, as ideologias políticas modernas surgiram como resposta a essa nova realidade sociológico-política, dos processos de urbanização e pauperização das massas anteriormente rurais. Os confrontos políticos violentos não foram algo de excepcional. Mas, apesar da profunda clivagem entre o proletariado e a burguesia — e das lutas sociais e políticas —, existiam, paralelamente, valores culturais e um passado histórico em comum razoavelmente partilhados. Geravam um sentimento de pertença a uma mesma comunidade nacional. Isso não existe no indivíduo que vive na lógica do gueto, oriundo de uma cultura distante e com valores em rota de colisão com o grupo maioritário da sociedade onde vive. Formalmente é cidadão de um Estado europeu. Interiormente, essa não é a sua identidade. A sua revolta não é em nome de uma ideologia iluminista e secular.

4. A existência de uma massa de indivíduos jovens e desintegrados nas grandes cidades europeias surge como um terreno ideal para a propaganda e o recrutamento do islamismo-jihadista. Este novo proletariado étnico incorpora jovens de gueto, os quais se sentem excluídos da sociedade dominante, desumanizados. Ambicionam o bem-estar material, que não conseguem obter, mas não se sentem atraídos pelos seus valores. Justa ou injustamente, culpam-na pela sua falta de perspectivas na vida. Projectam nesta os seus falhanços pessoais e comportamentos desviantes. Vêm a sociedade onde deveriam estar inseridos como responsável pelos males do Islão, com o qual se auto-identificam e lhes dá um sentimento de orgulho, de superioridade e de missão. O sofrimento dos muçulmanos, do Afeganistão à Palestina, é também o deles. Uma ilação parece torna-se cada vez mais nítida: o multiculturalismo de gueto é uma benesse para o Daesh (Estado Islâmico) e outros grupos islamistas-jihadistas. As ordens para atentados terroristas poderão ter vindo de Raqqa, a “capital” do Daesh na Síria, mas os executantes nasceram na Europa. Têm documentos de identidade e passaportes europeus. Não se sentem europeus. Sentem ódio aos europeus.

5. Como se chegou a esta tragédia europeia? No passado, a obsessão com a homogeneidade cultural, étnica, religiosa e linguística fazia para do credo nacionalista, um credo amplamente partilhado por intelectuais e políticos que endoutrinavam as massas nessa lógica. As consequências foram desastrosas. Os excessos são hoje bem conhecidas e amplamente criticados. Ao longo da segunda metade do século XX e inícios do século XXI entrou-se numa nova fase. A diversidade cultural, étnica, religiosa, linguística e de estilos de vida, ocupou o lugar das obsessões nacionalistas do passado. Como qualquer princípio estruturante de uma sociedade — o capitalismo de mercado, por exemplo —, a diversidade cultural é boa até um dado limite. Esse limite está, em qualquer caso, ligado à capacidade de integração, numa determinada sociedade, de novas populações. A questão não é apenas de número, de necessidades da economia, ou de oportunidades no mercado de trabalho. É também de distância cultural. Quanto mais próxima a cultura, mais fácil e rápida a integração. Assim, quantidades significativas podem ser facilmente integradas, e grupos relativamente pequenos podem nunca se integrar. Com o multiculturalismo e transformar-se em gueto, a questão em aberto é saber o que falhou. Foram as políticas de integração, ou os limites de integrar novas populações que foram ultrapassados?

6. A existência de uma fractura cultural, em si mesma, não leva, automaticamente à violência e ao terror, ou mesmo a problemas de segurança. Nem podemos cair no simplismo distorcedor de considerar todos os não integrados como radicais, ou propensos à violência. Por vezes, nem sequer tiveram oportunidade de se integrar. Noutros casos, trata-se apenas de um encerramento pacífico sobre si próprios, como forma de autoprotecção. Mas, conjugando-se certas circunstâncias políticas, internas e internacionais, como acontece actualmente com o Islão, a probabilidade de alguns penderem para o radicalismo aumenta significativamente. Os islamistas-jihadistas do Daesh e outros grupos radicais sabem disso. Usaram-no a seu favor no 13/N em Paris e no 22/M em Bruxelas. Recrutaram gente para a violência e o terror. Tentam criar um “exército de cidadãos-inimigos”. Preocupante é o facto de muitos outros já estarem radicalizados pela sua propaganda. A fronteira para a passagem à violência é ténue.

7. Os governantes europeus vivem num mundo cosmopolita multicultural à parte, afastado da realidade do cidadão comum. Ironicamente, o multiculturalismo de gueto germina há décadas, não muito longe dos locais que frequentam, perante a sua indiferença, ou ausência de qualquer actuação eficaz para o reverter. Se, nas cimeiras europeias em Bruxelas, tivessem de se deslocar aos bairros de Molenbeek ou de Forest, teriam já percebido a sociedade explosiva que se está a criar. O problema não é só da Bélgica. Aos guetos da periferia de Bruxelas, acrescem os de Paris, Marselha, Londres, Birmingham, Amesterdão, Roterdão, Colónia, Berlim, Malmö, etc. A lista é longa e tem aumentado. O detonador do mal-estar são as circunstâncias políticas internacionais e as intervenções impensadas no Médio Oriente. Não será surpreendente se o Daesh e outros grupos islamistas-jihadistas continuarem a crescer no interior das sociedades europeias. O terrorismo é a sua arma política. O gueto o seu habitat.
Investigador

Em Molenbeek recrutadores actuam como "traficantes à porta da escola"
ANA FONSECA PEREIRA 29/03/2016 - PÚBLICO

SMS foram enviados a jovens da comuna de Bruxelas incitando-os a juntarem-se ao "combate aos ocidentais". Habitantes e responsáveis locais dizem que pouco está a ser feito para travar recrutamento.

As mensagens chegaram domingo à noite, horas depois de hooligans ligados à extrema-direita terem irrompido numa manifestação espontânea de homenagem às vítimas dos atentados na capital belga. “Meu irmão, porque não te juntas a nós no combate aos ocidentais? Faz a escolha certa na tua vida”, lia-se no SMS enviado a jovens de Molenbeek, a comuna de Bruxelas de onde saiu um terço dos belgas que foram combater na Síria e que, desde os atentados de Novembro em Paris, se tornou símbolo do fracasso para prevenir e combater o alastramento do radicalismo na Europa.

“Esta gente está a tentar apoderar-se dos nossos jovens de um fôlego”, acusa Jamal Ikazban, deputado socialista no parlamento regional e conselheiro municipal em Molebeek, que denunciou o caso às autoridades federais, numa entrevista ao Guardian. O jornal britânico adianta que a mensagem foi enviada de um número pré-pago, que não se encontrará já activo, e é parte de um conjunto de mensagens no Facebook ou de emails enviados nos últimos dias a um número indeterminado de jovens – supostamente escolhidos entre as listas de contactos de novos recrutas do Estado Islâmico.

“Isto é como ter um grande traficante de droga à porta de uma escola. O sentimento é o mesmo”, denuncia Ikazban, dizendo que é urgente “tirar esta gente das ruas”. “Eles são predadores e os nossos jovens são as suas vítimas.”

Desradicalização: "Para cada pessoa há uma janela de oportunidade”

Uma semana depois dos atentados que mataram 35 pessoas e deixaram mais de 340 feridas na capital política da União Europeia, o grito de alerta pode encontrar pouco eco junto das autoridades (mais preocupadas em desmantelar o essencial da célula terrorista) ou da população belga, indignada ainda com a carnificina provocada por homens nascidos e criados no país. Mas quem conhece Molenbeek ou viu um jovem familiar ignorar todos os apelos à razão e partir para a Síria diz que, apesar das operações policiais anunciadas contra as redes de recrutamento, pouco tem sido feito para travar o assédio.

A mãe de dois rapazes que se juntaram às fileiras do Estado Islâmico contou Guardian que um deles recebeu 140 telefonemas do recrutador nos dez dias que antecederam a sua partida. Quando avisou a polícia de que o filho estava prestes a embarcar para a Turquia, os agentes nada fizeram. O mesmo diz Geraldine, mãe de um combatente que foi morto na Síria, que alarmada com as intenções do filho avisou a “célula de anti-radicalização” da polícia em Molenbeek, mas acabou por descobrir que a magistrada que lhe poderia ter retirado o passaporte recusou intervir alegando que ele era maior de idade.

Os nossos jovens “estão a ser expostos a algo parecido com um cancro metastizado”, alerta Jamal Zaria, imã de uma das mesquitas desta comuna, onde mais de metade da população tem origem marroquina, o desemprego entre os mais novos abeira-se dos 60% e o nível de criminalidade supera em muito a média nacional. Os recrutadores “percebem que há aqui um desespero que pode ser usado para doutrinar e recrutar estas pessoas”, lamenta Ikazban, confessando-se “muito zangado” com a incapacidade belga para estancar esta sangria.

A Bélgica é um país dividido que não sabe combater o terror no seu interior

Mas há dedos apontados também aos líderes da comunidade, a começar pelas mesquitas. Em Novembro, a emissora alemã Deutsche Welle escrevia que, em 1967, ao abrigo de um acordo que lhe garantiu petróleo a preços mais baixos, a Bélgica autorizou a Arábia Saudita a formar boa parte dos imãs que desde então pregam para as comunidades magrebinas.

“Os imãs aqui [na Europa] imitam os sauditas, estão empenhados em isolar os muçulmanos do resto da sociedade. Foram emitindo fatwas como as que dizem que dar a mão a uma mulher ou desejar Feliz Natal a um vizinho é haram [pecado]”, disse ao jornal El País Hocine Benabderrahmane, historiador e imã reformista de Bruxelas, lamentando que seja este o discurso “que a juventude muçulmana europeia tenha escutado” desde a infância. Responsável de um centro de reflexão islâmica, Benabderrahmane, de origem argelina, diz não ter dúvidas de que o salafismo, corrente que defende uma interpretação literal do Corão, se tornou dominante no país: “Todos os dias vejo jovens radicalizados que acreditam que só há uma versão do islão.”

Manifestação da extrema-direita
Um extremismo que alimenta outro, como bem demonstraram as centenas de radicais de direita que no domingo tomaram de assalto o centro de Bruxelas, interrompendo uma homenagem aos mortos nos atentados. A polícia dispersou-os com canhões de água, mas pouco depois começou a circular na Internet um apelo a uma manifestação no próximo sábado em Molenbeek, “verdadeiro viveiro de islamistas” para exigir a sua “expulsão da Europa”.


A concentração, marcada para a mesma praça onde vive a família dos irmãos Abdeslam, dois dos dez atacantes de Paris, foi convocada pela Geração Identitária, um movimento de extrema-direita que segundo a rádio belga RTBF defende a “Reconquista da Europa”. A burgomestre Françoise Schepmans disse não ter recebido qualquer pedido para a realização da manifestação, mas assegura que qualquer protesto do género será proibido. “Quando lutamos contra o extremismo, estamos a lutar contra todos os extremismos. Está fora de questão deixar loucos furiosos expressar-se”, afirmou, àquela rádio. Mas depois dos confrontos de domingo e com a extrema-direita a ganhar fôlego à custa do terrorismo, ninguém descarta a hipótese de incidentes violentos entre grupos locais e de hooligans.

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