domingo, 17 de janeiro de 2016

A Europa multicultural e a reversão do Maio de 68 / JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES



Ms. Merkel Invited Me”

A Europa multicultural e a reversão do Maio de 68
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 16/01/2016 - PÚBLICO

Se não for bem-sucedida, a Europa irá regressar a valores tradicionais, imbuídos de tonalidades não europeias.

1. Maio de 1968 em Paris. Revolução política e cultural. Culminar do processo de transformação social iniciado na Revolução Francesa de 1789. “Il est interdit d’interdire” / É proibido proibir. O slogan do humorista e actor Jean Yanne captou o seu espírito. Os acontecimentos conquistaram um lugar mítico na história europeia e ocidental do último meio século. Marcaram a irrupção dos valores da actual contemporaneidade. Igualdade de género, liberdade sexual, relações fora casamento, refutação dos valores tradicionais e patriarcais, contestação da autoridade estabelecida, nas estruturas estaduais, sociais e familiares. Contestação à opressão do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo sobre os povos. Para as mulheres, a transformação foi particularmente radical. “La beauté est dans la rue” / A beleza está na rua, era o slogan de um dos cartazes mais emblemáticos do Maio de 68. A mulher (Marianne), já não levantava a bandeira sobre a barricada, como na famosa pintura de Eugène Delacroix, em 1830, “A liberdade guiando o povo”. Agora, lançava paralelos contra as forças da ordem, como os homens que protestavam nas ruas. Agora, era a conquista feminina do direito de lutar ao lado dos homens, ou, de forma mais abrangente, de estar em plena igualdade com estes. Vitória da emancipação feminina. Vitória da emancipação dos corpos. Vitória da transformação cultural permanente. Os jovens do Maio de 68 tinham derrotado os valores ancestrais dos seus pais, tornando-se radicalmente livres. Assim lhes parecia no final dos anos 1960.

2. 8 de Janeiro de 2015, Colónia, Alemanha. “Respektiert uns! Wir sind kein Freiwild, selbst wenn wit nackt sind!!!” / "Respeite-nos! Não somos jogo limpo, mesmo se estamos nuas!!!” O slogan (tradução livre), era exibido pela artista suíça, Milo Moiré. Ao contrário das feministas do Maio de 68, não estava na rua para fazer uma revolução cultural e difundir novos valores, ou atirar paralelos à polícia para afirmar a igualdade com os homens. Protestava, publicamente nua, na praça em frente à imponente catedral de Colónia, após os incidentes da passagem de ano de 2015/2016. Motivo: solidariedade com as dezenas de mulheres molestadas por grupos de homens jovens, oriundos de África e do Médio Oriente, na noite de passagem de ano. Na actual Europa, liberal nos costumes e de valores seculares, Milo Moiré simboliza a luta pelos valores femininos conquistados nas últimas décadas. Para além dos incidentes do foro criminal, o caso poderia servir para exemplificar uma clássica discussão sobre um conflito de valores éticos, em contexto multicultural. Numa cultura (europeia), o sexismo é objecto de censura social e sancionado legalmente. Noutras culturas (não europeias), o sexismo tem um estatuto de normalidade social e está conforme os valores éticos dominantes sobre o comportamento masculino. Há superioridade dos valores de uma cultura sobre as outras? Todas as culturas estão num plano igualitário, os seus valores apenas são diferentes? Se a resposta é esta última, como se resolve o problema da coexistência, no mesmo espaço público? Importa sublinhar: no meio século após o Maio de 68, ocorreram transformações culturais profundas, e, sem qualquer dúvida, a um ritmo mais rápido do que em qualquer outra época da história. Mas ocorreram, essencialmente, na Europa, no Ocidente, e nas partes do mundo que absorveram, de alguma forma, os seus valores. No passado, eram mundos separados. Hoje, estão frequentemente em contacto e intersectam-se, no mesmo espaço público, devido à globalização.

3. Afastemos o nosso eurocentrismo. Em grande parte do mundo as populações permanecem essencialmente imbuídas de valores tradicionais. Estes continuam a ser transmitidos, de geração em geração, como sempre foram, ao longo de séculos e séculos. Tal como nós europeus, não há muitas décadas atrás, também o fazíamos. O Portugal dos anos 1960 e 1970 reflectia ainda essa realidade (numa matriz cristã). Mantém-se assim, hoje, na generalidade do Sul e Leste do Mediterrâneo (numa matriz islâmica). A questão é que, num mundo globalizado e de importantes movimentos migratórios — de Sul para Norte —, isso tem implicações profundas no estilo de vida das sociedades, na sua organização, na continuidade dos valores. Os migrantes ou refugiados podem deixar a sua família, amigos e bens nos países de origem. Fazem-no, frequentemente, em circunstâncias épicas e trágicas. Mas trazem a sua cultura e valores consigo. É humano. Não são meros homo economicus da máquina do capitalismo (neo)liberal. Trazem uma diferenciação clara do papel dos sexos na família e na sociedade; trazem a autoridade familiar e do grupo étnico e/ou religioso sobre o indivíduo; trazem a tendencial restrição do papel da mulher à família e aos filhos; trazem o confinar da sexualidade feminina ao casamento; trazem o estatuo de supremacia do ancião sobre o jovem. Estes valores, de um modo geral, impregnam a sua identidade e estão profundamente ancorados no religioso e no transcendental. Não é surpreendente. Em nenhuma cultura tradicional, seja europeia, africana, asiática, ou qualquer outra, se desenvolveram os valores seculares e liberais europeus, da forma como os conhecemos na actual contemporaneidade. Não foi uma evolução espontânea, nem harmoniosa que os gerou. Afirmaram-se após revoluções violentas e rupturas culturais profundas, iniciadas nos séculos XVII e XVIII europeus.

4. Os valores liberais e seculares do Maio de 68 sempre tiveram ferozes opositores dentro da Europa. Pela sua própria visão do mundo, os sectores políticos, sociais e religiosos mais tradicionalistas e conservadores, estão, desde o início, em oposição a estes. Sempre os contestaram e tentarem reverter. À excepção do capitalismo (neo)liberal — que se apropriou, com sucesso, destes, incorporando-os na lógica de mercado —, a oposição foi, mais tarde ou mais cedo, sempre superada. A dinâmica sociológica e política impôs a sua difusão e absorção pelas gerações pós-Maio de 68. Mas, desde essa mesma época, germina uma outra dinâmica tradicionalista e conservadora que passou, até agora, quase despercebida. Tem origem, sobretudo, em populações não europeias e está associada a fenómenos migratórios. Até há pouco tempo, não tinha visibilidade, não ocupava o espaço público. Estava remetida ao gueto. Era ignorada. Nos últimos anos, em parte pela sua maior dimensão, em parte pelos conflitos do mundo árabe-islâmico envolvente que se projectam no interior da Europa — os fluxos de refugiados são um exemplo óbvio —, ganhou visibilidade. Esta acentua-se pela quebra demográfica e envelhecimento, sem precedentes, das populações nativas europeias. O contraste é nítido. Populações demograficamente dinâmicas, muito jovens, com predominância masculina, mas imbuídas de valores tradicionalistas e convicções transcendentais, são uma improvável continuidade geracional da secularização e emancipação feminina. Uma questão desconcertante vem à mente: serão os tradicionalistas religiosos a herdar a terra? (Ver o livro de Eric Kauffman, “Shall the Religious Inherit the Earth? Demography and Politics in the Twenty-First Century”, Profile Books 2011).

5. Há uma ilação que vale a pena tirar dos acontecimentos da última passagem de ano em Colónia, na Alemanha. A continuidade futura de uma Europa democrática, liberal tolerante nos costumes, enfrenta um desafio complexo. Pelos seus valores intrínsecos, deve tolerar a diferença, deve ser uma sociedade plural e aberta. Tem necessariamente de afastar os radicalismos de extrema-direita e xenófobos que se alimentam e prosperam com incidentes como esse. Mas não deve evitar colocar, a si própria, um problema delicado, o qual tem sido iludido. Não é a diversidade cultural, em si mesma, que o coloca. Esta, por princípio, é boa e pode ser estimulante do progresso social e humano. É a crescente coexistência, no mesmo espaço público, de populações imbuídas de visões do mundo e concepções éticas muito diferentes, nos valores estruturantes da sua identidade. De um lado, uma cultura secular e liberal nos costumes, que perdeu conexão com o transcendental e promove a transformação social como uma evolução humana. Do outro lado, culturas tradicionalistas, imbuídas de convicções transcendentais e valores religiosos, vistos como intemporais. Apreciam o progresso tecnológico e o bem-estar material, mas convivem mal com a desconstrução dos valores religiosos e éticos tradicionais, que os europeus apontam como caminho para si e para a humanidade — herança do Iluminismo e do Maio de 68. Paradoxalmente, no contexto multicultural actual da Europa, a abertura ao outro, pode levar a ter, cada vez mais, população desfasada, e contestatária, dos valores seculares e liberais. Não é uma inevitabilidade, mas é uma possibilidade real. A questão decisiva vai jogar-se na capacidade de integração e socialização nos valores da contemporaneidade europeia. Se não for bem-sucedida, a Europa irá regressar a valores tradicionais, imbuídos de tonalidades não europeias. Os emancipados do Maio de 68 serão os primeiros a sentir essa possível transformação regressiva.


Investigador

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