domingo, 22 de novembro de 2015

Paris / TERESA DE SOUSA


Paris

TERESA DE SOUSA 22/11/2015 - PÚBLICO
Imagem / OVOODOCORVO

Se a França perder as esplanadas de Paris, a Europa perde parte da sua alma.

1. Há palavras que são ditas no meio de milhares de outras, mas que nos ficam gravadas na memória para sempre. São aquelas que sentimos através das emoções que moldaram as nossas vidas. “O que seria Paris sem as suas esplanadas” é uma dessas frases. François Hollande disse-a para romper o medo que cobriu Paris na noite do dia 13 e para mobilizar os franceses para a dramática necessidade de responder “touts les azimuts” a uma ameaça brutal à vida livre que vivemos e pela qual ainda estamos dispostos a lutar.

Faço parte daqueles para os quais Paris é sinónimo de felicidade e de liberdade. Onde é possível não ter um tostão e ser feliz. Palmilhar os seus boulevards alegremente, desfrutando da beleza, da luz, do mistério, das montras das livrarias, sentindo no rosto pela primeira vez a brisa da liberdade. Foram outros tempos, de exílio, quando num dia mais próspero, nos sentávamos na esplanada de um café, na Republique ou no Boulevard Saint Michel, pedíamos um copo de Bordeaux e um “jambon beurre” e nos sentíamos felizes só por isso. Ou olhar, mas não entrar, a esplanada do Flore, onde os intelectuais se entretinham a desfazer e a refazer o mundo, invejar os que entravam na Brasserie Lipp ou ir até ao Drouot comer um bife fantástico por meia dúzia de francos, em salas gigantescas onde cabia o mundo. Hoje a esplanada do Flore já não é a mesma coisa. Os filósofos estão a dar lugar aos turistas.

Poucos dias antes dos atentados li sobre a morte de um dos seus últimos intelectuais públicos, André Glucksmann, maoísta convertido à nova direita, feroz adversário de qualquer espécie de totalitarismo que recebeu de Bento XVI o Prémio Auschwitz para os Direitos do Homem João Paulo II. Era fácil viver feliz em Paris. Era fácil amar em Paris. Era fácil sonhar em Paris. Muita gente da minha geração sentirá o mesmo dever de fidelidade à cidade onde pela primeira vez foi livre e da qual conhece cada pequeno segredo. É por isso que dói ainda mais o terror que se espalhou nas suas esplanadas.

2. Mudaram os tempos, mas De Gaulle continua a ser o molde a que cada Presidente da V República se tem de adaptar quando a França é desafiada. Hollande quis apresentar-se aos franceses como um Presidente “normal” depois da agitação frenética e às vezes imprópria de Sarkozy. Hoje está confrontado com o mais difícil de todos os desafios que um país democrático tem de enfrentar. É um líder fraco, e consequentemente impopular, que os acontecimentos obrigam a ser forte. O Guardian escreve que ele fez o que tinha a fazer: “Ergueu-se, tomou uma posição clara, afastou qualquer sentimento de dúvida ou de autocomiseração e mobilizou uma nação em defesa da República.”

O mais difícil começa agora. Hollande tem de saber mobilizar também os europeus para a necessidade de olhar o mundo de frente e ir buscar forças para não se render perante a adversidade. Será possível? Não sei. Entre “la grandeur” e “le malaise”, a psicologia dos franceses oscila demasiado, num espelho de vaidades em que as derrotas podem ser facilmente transformadas em vitórias e em que a abertura pode dar lugar ao chauvinismo. Por isso tantas vezes convive mal consigo própria. São também demasiados os sinais de que a União Europeia corre o risco de se ir desfazendo aos poucos, sem que sequer dêmos por isso.

A renacionalização das agendas políticas, o espírito do “salve-se quem puder”, as profundas divisões entre os seus membros sobre o euro, sobre os refugiados, sobre a economia, sobre o mundo são sucessivos gritos de alerta de que pode, de novo, não resistir aos seus fantasmas. Mitterrand dizia que “o nacionalismo era a guerra”. Mas era do tempo em que os líderes europeus tinham vivido a guerra.

3. Se a França perder as esplanadas de Paris, a Europa perde parte da sua alma. Compreendo por antecipação o olhar implacável da jovem intelectualidade nacional, que teve o privilégio de estudar nas melhores universidades anglo-saxónicas onde se habituou a olhar a França como um país que apenas se reforma pela revolução, que é a pátria de Voltaire mas também de Rousseau, que inventou o terror enquanto abria as portas ao ideal da igualdade, da fraternidade e da liberdade, que permanece um lugar de jacobinos incapazes de compreender o liberalismo no seu sentido filosófico. Têm outra forma de olhar para as coisas, não sei se melhor ou pior, mas onde tenho a certeza que não cabem as esplanadas de Paris.

É verdade que a França tem muito por fazer para recuperar a sua economia, tornando-a mais competitiva face a uma globalização que sempre teimou em rejeitar mas que não irá embora. Hoje, a sua vulnerabilidade económica e política é vista como um dos maiores problemas que a Europa tem de enfrentar, justamente porque está no coração da integração. Mas não nos enganemos. Estamos a falar de um país que, há pouco mais de 10 anos, tinha uma produtividade superior à alemã (hoje inferior), graças a uma população no geral muito bem-educada. A sua relação com uma Europa, que começou por ver como uma forma de multiplicar o seu poder, foi sempre complexa (no fundo, quase tão complexa como a do Reino Unido). Funcionou quando a Alemanha e a Europa estavam divididas.

Tudo mudou a partir da Queda do Muro e a França se viu ameaçada no seu papel liderante. Muitos dos sobressaltos da unificação alemã já foram superados. Mas falta ainda encontrar o seu lugar no novo equilíbrio de poder europeu, que pendeu claramente para Norte. Por enquanto, a França revê-se na sua “force de frappe”, nos seus dois porta-aviões ou na sua capacidade militar, que lhe garantem (ainda) o estatuto de potência capaz de ter influência mundial. Há apenas dois anos Angela Merkel ainda dizia entre dentes que “não estava disponível para pagar as guerras da França”, referindo-se ao Mali. Hoje não dirá a mesma coisa. Também hoje, a França está muito menos vulnerável à velha tentação antiamericana, idealizando um poder europeu equivalente aos dos EUA e capaz de o desafiar, que nunca existiu. Fá-lo também para disfarçar as suas próprias fraquezas. Quando De Gaulle chamou o embaixador americano ao Eliseu para lhe comunicar que a NATO deveria retirar a sua sede e as suas forças militares da França, ouviu a resposta que não queria ouvir: “Quer que leve também os cemitérios?”. Mas foi a França que ofereceu a Nova Iorque a sua Estátua da Liberdade.

A Europa é isto tudo. Paris, Londres, Berlim, Roma, Varsóvia, cidades que contam a sua História, que arrastam o seu peso consigo, mesmo que tenham tido a coragem de a contrariar em nome da paz.

4. Houve outra frase que não me saiu mais da memória, dita em Antalya, na Turquia, pelo Presidente Obama durante a cimeira do G-20. Tem a ver com toda a espécie de radicalismo nativista e populista que invadiu a política norte-americana. Confrontado com a decisão de vários Estados da União de não aceitarem mais nenhum refugiado ou aceitarem apenas os cristãos, o Presidente americano disse secamente: “Não vou aceitar nunca que se meça a nossa compaixão em função da religião”. Prometeu vetar (e vai ter de fazê-lo) qualquer lei que endorse esta política.


Também a América sofre dessa doença mortal a que se chama raiva e desprezo pelo outro que infecta a política europeia e que o terror visa alimentar. A campanha para a escolha de quem será o candidato republicano está a oferecer-nos esse lado negro da América em doses demasiado assustadoras, mesmo sabendo que os seus autores muito provavelmente nunca serão eleitos. O problema é que é por aí que se começa muitas vezes um caminho que deixa de ter retorno. É o mesmo risco que a Europa corre. As suas cidades vão continuar a ser postas à prova pela mesma barbárie que se abateu sobre Paris. Conseguirão resistir?

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