domingo, 8 de novembro de 2015

O leilão onde todos vão perder / MANUEL CARVALHO

Se ainda existe alguém que pensa que as consequências deste caos irresponsável não serão visíveis de forma grave no funcionamento , prestígio e credibilidade do regime democrático em Portugal , esse que se cuide.
A Nação Portuguesa vive um momento grave.
OVOODOCORVO

O leilão onde todos vão perder
MANUEL CARVALHO 08/11/2015 / PÚBLICO

A política em Portugal virou o mundo ao contrário e já ninguém pode dizer ao certo quem é quem e o que é o quê. Com o descalabro do sistema partidário tradicional vemos agora a Coligação do PSD e do CDS a querer governar com partes do programa do PS, vemos o PS a negociar um programa inspirado nas propostas do Bloco e do PCP, vemos o Bloco a renunciar a muitas das suas exigências de esquerda para se aproximar do centro e só não sabemos em que lugar está o PCP apenas porque o PCP ainda está aturdido com tantas novidades. O que tudo isto quer dizer antes de mais é que os partidos, todos os partidos, se tornaram ainda mais máquinas de conquistar o poder, nem que para isso tenham de vender a sua alma ao diabo, dar o dito pelo não dito e transformar os jogos de alianças em necessidades absolutas para derrotar os inimigos. Se a política portuguesa já era uma duvidosa artimanha alimentada por uma elite (a oligarquia, como lhe chama o historiador Rui Ramos), está agora a transformar-se numa barraca de feira onde vale tudo para vender melhor o peixe.

Deste pântano, ninguém se salva. Passos Coelho, que conseguiu passar uma imagem de coerência e determinação a uma parte significativa do eleitorado durante a campanha eleitoral, foi o primeiro a afundar-se. As suas 23 propostas para a negociação de um acordo com o PS foram um primeiro passo para declarar em público que, afinal, toda a prudência com as contas do Estado, todos os cuidados com o ritmo da devolução dos salários cortados ou dos impostos cobrados eram apenas um engodo para legitimar a dureza da sua governação e a submissão aos ditames dos credores internacionais. Afinal, o rosto da ortodoxia fiscal e da inevitabilidade da austeridade era capaz de sorrir e de avançar medidas mais simpáticas. Já nas últimas semanas, o desespero de Passos e Portas em evitar a fuga do PS para a órbita da esquerda foi tão longe que deixamos de poder falar em cedências negociais para seduzir os socialistas para ser legítimo concluir que, afinal, o programa da Coligação era, como diz a esquerda, um embuste para esconder a tentação ideológica que afastou o PSD da sua raiz social-democrata.

Quando Passos e Portas concordam com uma devolução mais rápida dos salários ou aceitam adiar por um ano o cumprimento das metas orçamentais inscritas no Pacto de Estabilidade de Crescimento, não estão a negociar: estão a desconstruir a sua imagem e a banalizar as suas prioridades políticas. Porque se, como nos disseram e reiteraram, Portugal só poderá aspirar a uma nova fase de crescimento se for capaz de disciplinar as suas finanças públicas, então jamais poderiam ceder nesse princípio essencial. Fazendo-o agora entregam os seus despojos políticos à razão dos adversários e erguem-se como os arautos de um fundamentalismo e de uma arrogância que, tarde ou cedo, lhes custará caro. Dificilmente a curto prazo terão como responder a perguntas simples e directas: por que razão não recuaram antes nestes domínios para obter a aquiescência do PS em reformas essenciais? Por que razão não apresentaram um programa eleitoral mais flexível e amigo dos cidadãos, se, como agora reconhecem, era possível relaxar os cortes e o ritmo da consolidação orçamental sem que o mundo acabasse?

Neste mundo ao contrário, também o PS soçobra na coerência, derrapa na firmeza da palavra e deixa esvair a sua identidade. Já lá vai o tempo em que se acusava António Costa de falta de lealdade e transparência perante o seu eleitorado, já deixaram de se ouvir as patetices de uma certa direita em relação a golpes ilegítimos e acabaram de vez os sobressaltos com a ameaça de uma frente esquerdista capaz de fazer regressar os fantasmas do PREC. O que hoje vale a pena notar é como o PS se tornou numa bola de plasticina que o PCP e, mais eficazmente, o Bloco se entretêm a moldar. Já percebemos pelos problemas da negociação com o PCP que António Costa estabeleceu um limiar mínimo para as cedências que o devem fazer repetir um milhão de vezes a Jerónimo de Sousa a velha máxima do ex-ministro Vítor Gaspar: “Não há dinheiro. Qual destas três palavras não percebeu?”. Mas ao querer vender o robalo da esquerda para arrasar o negócio da dourada da direita, António Costa deitou ao caixote do lixo o programa de Mário Centeno e transformou-se num coleccionador de recusas de um passado em vez de aparecer como um porta-voz de asserções para o futuro. Para um aspirante a primeiro-ministro, é muito pouco.

O PS de António Costa vai liderar um governo de copy-paste. Sempre que aparecer um texto novo para ler e interpretar, seja o agravamento da conjuntura económica ou um estouro imprevisto em assuntos como o do Novo Banco, o PS estará condenado a reiterar a sua condição de vassalo aos seus fugazes aliados — isto partindo do princípio que o PCP lhe concede alguma suserania. Se é verdade que António Costa parece estar a conseguir vergar a sua esquerda na questão essencial (a disciplina orçamental indispensável para preservar os acordos europeus), em tudo o resto parece um saco de boxe. Tem de aguentar muita pancada. O governo que em tese vai liderar é um pano remendado que se romperá ao primeiro esticão.

Claro que nesta transformação da política num leilão onde vale tudo para chegar ao poder, o PCP e o Bloco se vão empenhar nas proclamações tonitruantes do costume para elogiar as conquistas dos trabalhadores e do povo em geral. Nenhuma destas forças vai dizer que, afinal, há um limiar de austeridade intransponível, que há compromissos que não se quebram, que há dívidas que não se renegoceiam, que há salários baixos não porque em Portugal haja uma classe de capitalistas opressora, mas porque a produtividade da economia é deplorável. Entre a ilusão e a realidade, o peso de uma vitória sobre a direita poderá ser capaz de diluir as pressões e o descontentamento durante uns tempos. Tarde ou cedo, porém, a esquerda à esquerda do PS vai equacionar se a sua entrada na feira das ilusões para disputar o poder foi um bom negócio.


Com o peso de uma memória de décadas, o PCP já o está a fazer. Todas as suas indecisões, cautelas e atrasos são o sinal dos perigos que a exposição aos compromissos com a governação coloca. Quem não gostaria de assistir à discussão sobre o acordo no Comité Central? Que dirá a velha guarda sobre o respeito do tecto do défice nos 3%? Para o Bloco, tudo é mais simples. Entre o que defende e o que se dispõe a aprovar há um oceano de diferenças, mas Catarina Martins (que se confirma como uma das mais geniais personalidades políticas das últimas gerações) foi capaz de as aplacar com oportunidade e inteligência. Ainda assim, também o Bloco é incapaz de se poupar à mácula de trocar princípios por influência e poder. De todos, será o partido mais protegido. Mas, como todos, será um dia convocado a prestar contas por este espectáculo no qual todos ficaremos a perceber que no final do leilão o que sobressaiu não foi a política: foi a inconsistência da classe que a protagoniza.

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