domingo, 22 de novembro de 2015

As desventuras do dr. Cavaco - VASCO PULIDO VALENTE / A Presidência de Cavaco está prestes a acabar - Manuel Carvalho

As desventuras do dr. Cavaco
VASCO PULIDO VALENTE 21/11/2015 - PÚBLICO

O dr. António Costa não se recomenda. Muito bem. Tarde ou cedo, nós trataremos dele, sem a ajuda vexatória e inútil do dr. Cavaco.

O dr. Cavaco tem tido um comportamento que se compreende com dificuldade. Foi à Madeira por causa de um “roteiro” qualquer, que não perdia nada em ser adiado. Consultou representantes do patronato e dos sindicatos, consultou os directores da banca e também um grupo de economistas, de autoridade pelo menos duvidosa, que não se percebe como foi escolhido. Ontem consultou os partidos e consta que se prepara para consultar o Conselho de Estado. Mais de 50 e tal peritos para o iluminarem, embora ele já soubesse tudo, como garantiu ao país, para o acalmar, antes de 4 de Outubro; e na Madeira não se coibisse de insinuar que os governos de gestão não eram assim tão maus. Ele – ele mesmo, o genial dr. Cavaco – dirigira um Governo desses em 1987, para maior felicidade dos portugueses, como é público e notório.

A Câmara Corporativa pessoal e aleatória que nestes dias passou por Belém parece substituir, para o Presidente da República, os representantes do povo que estão em S. Bento, no pleno uso dos seus poderes. Mas S. Exa não se incomoda. Seria interessante saber o que aprendeu com tanta conversa. Que devia conservar Passos Coelho, doesse a quem doesse, incluindo ao próprio Passos Coelho, para que não se metesse na cabeça da Guarda Vermelha ir assaltar o dr. Vítor Bento? Ou que devia indigitar Costa para formar Governo e deixar que a vida política democrática tal como existe em Portugal o limitasse e o substituísse? Ou ainda que impusesse a Costa as suas condições, para garantir que o país continuaria a andar a seu gosto ou que a aliança da esquerda acabaria antes de começar?

Como as bruxas (dos dois sexos, claro) voltaram a opinar por Portugal inteiro, não me repugna esclarecer o que perturba o espírito do outrora vidente dr. Cavaco Silva. Em primeiro lugar, com o tacto que o caracteriza, condenou liminarmente um Governo António Costa e o entendimento em que ele assentaria. Em segundo lugar, como uma grande quantidade de portugueses, detesta a personagem, a sua manha e a sua brutalidade. E, em terceiro lugar, duvida, e com razão, que o PS consiga conservar um mínimo de equilíbrio nas finanças, na economia e na frágil sociedade que nos deixaram 40 anos de incapacidade e corrupção. Talvez não se engane. Mas nada justifica que em 2015 arrisque cegamente o pouco que por enquanto continua em pé. O dr. António Costa não se recomenda. Muito bem. Tarde ou cedo, nós trataremos dele, sem a ajuda vexatória e inútil do dr. Cavaco.

A Presidência de Cavaco está prestes a acabar

Foi a proverbial arrogância de Cavaco que o arrastou para o pântano onde se encontra

Manuel Carvalho / 22-11-2015 / PÚBLICO

Se a vida política em Portugal fosse uma coisa normal, ninguém estranharia que o Presidente da República demorasse duas semanas a ponderar a indigitação de um primeiro-ministro que não liderou o partido ou coligação vencedora das eleições e que se oferece para o cargo após ter apresentado ao Parlamento uma moção de rejeição que derrubou a solução escolhida por Cavaco Silva. Mas como nada é normal neste país depois do dia 4 de Outubro, a demora do Presidente deixou de ser vista como um simples acto de prudência, de ponderação ou de cuidado, para ser encarada como uma manifestação odiosa de mau perder. Porque depois de tudo ter sido dito e discutido, o Presidente que garantiu ao país ter uma resposta para qualquer desfecho das eleições deveria ter sido rápido a perceber que tinha de assumir a inviabilidade dos seus desejos e nomear depressa António Costa. Ao deixar-se enredar em visitas à Madeira, em discursos dúbios sobre a normalidade de governos de gestão e ao deixar o país arrastar-se na decisão durante uns penosos 50 dias, o Presidente delapidou ainda mais o parco capital de imagem que lhe sobra.
ENRIC VIVES-RUBIO
Cavaco Silva ficará para a posteridade como um caso de estudo dos limites do culto da personalidade no sistema político. O homem que se anunciou como providencial para desatar todos os nós da fragmentação dos partidos e da crispação alimentada por quatro anos de uma governação difícil transfigurou-se num gigante com pés de barro. Tudo lhe saiu ao contrário. A segurança que tentou criar sobre os estilhaços das eleições desfez-se com a recusa de António Costa em restaurar qualquer cenário de bloco central; as exigências que fez ao futuro Governo são hoje literatura romanceada de um desejo impossível; as declarações de vontade que foi deixando em favor de uma possibilidade de Governo de gestão ou de iniciativa presidencial esfumaramse perante a evidência de um Parlamento voltado para outras escolhas.
O Presidente prepara-se assim para viver os seus últimos meses de mandato embrulhado no signo da impotência e da derrota pessoal. O que vitimou a sua imagem e o seu legado para o futuro não foi, no entanto, a ausência de razão ou de racionalidade na sua posição; foi principalmente a forma emocional, individualista e intransigente como conduziu o processo político. Cavaco Silva, bem se sabe, é o homem que nunca tem dúvidas e raramente se engana e foi essa proverbial arrogância que o arrastou para o pântano onde se encontra. Ninguém o censuraria por tentar promover uma aproximação do PS à coligação, porque seria aí que, em teoria, haveria uma maior margem de manobra para consensos estratégicos para o futuro do país. Ninguém o questionaria por pretender afastar da esfera do poder partidos que, pela sua natureza e história, introduziriam na governação doses de experimentalismo pouco recomendáveis para um país que continua em convalescença após quatro anos de terapia de choque imposta pela troika e diligentemente aplicada pelo Governo. O problema de Cavaco foi não perceber que, na situação actual, os limites ao seu poder não recomendavam a intransigência, antes a sedução e a pedagogia. E o respeito pela diferença de opiniões, desde que constitucionalmente consagradas. Atributos que reconhecidamente lhe faltam.
A decisão de ouvir mais uma vez 24 organismos da vida pública e os sete partidos representados na Assembleia tornou-se assim um expediente patético para o Presidente iludir as suas derradeiras fragilidades antes de cair no buraco que ele próprio cavou. Quer queira, quer não queira, a solução de Governo apresentada por António Costa é legítima e, pelo menos em tese, tem o suporte que determina em Portugal quem pode governar: o da Assembleia da República. Cavaco sabe-o, mas, como tem dificuldade em encarar essa realidade, preferiu tergiversar multiplicando encontros com personalidades que toda a gente sabe o que tinham para lhe dizer. Foi como que uma espécie de último gesto de um homem vencido antes de deitar a toalha ao chão. Agora, já não há margem para qualquer nova exigência, para qualquer novo compromisso. A solução política que tinha na mente para o país podia ser óptima, mas não passava de uma quimera destruída pela obstinação de António Costa e pela convergência táctica do Bloco e do PCP. Se é o Parlamento quem manda, Cavaco nunca se deveria ter envolvido numa guerra que estava condenado a perder.
Depois de estourar o seu capital político, Cavaco Silva fica agora reduzido à condição de figura decorativa, numa altura em que, dada a fragilidade da solução de Governo do PS, a função moderadora do Presidente poderia revelar uma particular utilidade. Os embates entre o PS e o Bloco e, principalmente, entre o PS e o PCP já começaram e vai ser necessária muita ponderação para manter um mínimo de estabilidade na relação entre as forças que se dizem dispostas a viabilizar o Governo. Num quadro normal, o Presidente poderia ser um árbitro, suprimindo disputas e aproximando posições — porque o que, de facto, o país precisa é estabilidade e consensos mínimos. Cavaco Silva deixou de poder ter qualquer hipótese de representar esse papel. Para os partidos da esquerda (e para os cidadãos de Direita que se disponham a analisar a presente situação com um mínimo de distanciamento), Cavaco é o representante de uma facção, um paladino da direita, um intruso que transformou a Presidência numa trincheira do PSD e do CDS.


É difícil não encontrar uma vaga dimensão shakespeariana de injustiça neste estertor da sua carreira política. Cavaco foi dez anos primeiro-ministro num dos melhores períodos para se viver em Portugal em muitas décadas ou séculos; Cavaco foi duas vezes reeleito como Presidente e teve em muitos momentos dos seus mandatos lucidez para fazer avisos pertinentes ou para denunciar a “má moeda” que se instalava na máquina do Estado. A visão de Cavaco para o país, uma democracia liberal, firmada e comprometida com a União Europeia, com regras do mercado abertas mas temperadas por mecanismos de redistribuição de matriz social-democrata, é a que a maioria dos portugueses seguramente partilha. O seu problema maior, porém, sempre foi o seu radicalismo e a sua incapacidade para conceber um país com ideias diferentes das suas. Foi, afinal, a sua intolerância. Numa crise política como a actual, com a fractura esquerda/direita exposta, a sua personalidade estava condenada a agir como um elefante numa loja de porcelana. Foi isso que aconteceu, com as consequências que se conhecem. Quando der posse a Antonio Costa (ninguém imagina outro cenário), Cavaco estará a assinar o seu óbito político.

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