domingo, 19 de abril de 2015

“Saber com o que se conta” na versão do Governo / Manuel Carvalho


“Saber com o que se conta” na versão do Governo

Num país acomodado e triste a felicidade conquista-se com a ausência de riscos

Análise / Manuel Carvalho / 19-4-2015 / PÚBLICO

1. Lá pelo meio da sua longa apresentação do Programa de Estabilidade, a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, deixou um sério aviso à navegação da campanha eleitoral que se aproxima: “Com este Governo, os portugueses sabem com o que contam, o que já nos põe numa posição mais confortável do que a do maior partido da oposição, do qual não sabemos nada”, disse a ministra. Bem se sabe que a apresentação do programa até ao final de Abril é uma imposição europeia, mas o modo como o Governo o embrulhou num discurso com forte carga política é revelador do seu profissionalismo e determinação. O que ali está transcrito é, mais do que um simples acervo de medidas para cumprir as regras europeias, um programa eleitoral. Que, como convém aos programas eleitorais, diz o que pode e deve ser dito e omite o que não se deve dizer. Maria Luís Albuquerque, sem dúvida uma das estrelas do Governo, fê-lo com uma enorme competência.
O que pode e deve ser dito é que este Governo só concebe a possibilidade de se conservar no poder se não se tentar reinventar ou redimir. É a noção de que “os portugueses sabem com o que contam”. Não haverá o fim da austeridade, apenas o seu alívio faseado no tempo, não haverá obras nem investimento público, não caberá no seu programa qualquer ousadia para augurar no futuro a existência de amanhãs que cantam. “Os planos apresentados esta semana para reformas estruturais e metas orçamentais de médio prazo mostram-nos onde o Governo vê o país: a meio de um caminho muito difícil ou talvez no primeiro terço desse caminho”, escrevia ontem Ricardo Costa no Expresso. Ora, Passos e os seus pares gostam de se ver nessa caminhada.
Se todas as expectativas se cumprirem, Portugal produzirá um ano mais cedo do que o previsto excedentes orçamentais e reduzirá muito mais do que o exigido a sua dívida pública em relação ao produto. Havia, por isso, outra forma de construir um programa sem afrontar as exigências de Bruxelas — acelerando, por exemplo, a devolução dos salários aos funcionários públicos ou a redução da sobretaxa do IRS. O Governo não o faz porque sabe que a identidade que construiu é hoje um trunfo eleitoral. Num país acomodado, triste e desesperançado, a felicidade conquista-se com a ausência de riscos, com a prudência dos pais de família poupados e rotineiros. Vale mais ter um corte de 0,9% da sobretaxa do IRS do que nada, é melhor acabar com a austeridade só lá para 2019 do que nunca.
Pedro Passos Coelho é, já o escrevemos, um dos primeirosministros mais portugueses que Portugal alguma vez teve. Ele sabe que a ciclotimia nacional levou o país do gasto sumptuoso e exuberante para o medo de existir e vai disputar as eleições jogando nessa nova percepção dos problemas. “Saber com o que se conta” é nesta atitude muito mais eficaz como mensagem política do que a promessa vaga, incerta ou arriscada. A austeridade, agora na sua versão branqueada, é melhor do que o expansionismo orçamental. Valem mais crescimentos fraquinhos mas certos do que visões grandiosas mas incertas. “Esta é uma abordagem eleitoral a que não estamos acostumados”, reconhecia Paulo Ferreira no Observador.
Mas terão Passos e Maria Luís Albuquerque desistido de vez daquela demagogia que marca o tempo de eleições? Nem tanto. Dizer que no prazo de quatro anos os portugueses terão de volta o que perderam, é uma coisa, mas afirmar que esse exercício só é possível porque os custos serão pagos em outra factura, é outra. O “saber com o que se conta” resume-se às boas notícias. Não abrange a forma como vai ser paga a redução da TSU, ou como vai ser feito o corte de 600 milhões na Segurança Social. Nestes dois duros capítulos, o Governo difere os problemas, tenta envolver o PS, e espera que a sua complexidade técnica os liquide na algazarra da campanha. Algo estranho para um Governo que se diz determinado, corajoso e pouco preocupado com as eleições.
O PS e a oposição agarraram-se a esta fragilidade como náufragos, e com razão. O problema é que o fizeram de forma reactiva. Numa prática que se repete, tiveram de correr atrás do prejuízo. Ou, como escreveu, ainda inspirado pelo jogo do FC Porto contra o Bayern de Munique, David Pontes, no JN, “independentemente da avaliação que se possa fazer das propostas do Governo, o que a ministra das Finanças mostrou é que o Executivo continua a controlar o jogo (a agenda) e a Oposição nem tem bola, nem a consegue roubar no momento certo”.
Nesta terça, o grupo de sábios do PS terá uma oportunidade para equilibrar o jogo, quando apresentar o cenário macroeconómico e medidas fiscais para o futuro. Pode ser que, desta vez, António Costa esteja à altura do desafio lançado por Maria Luís Albuquerque. Enquanto os portugueses não souberem com o que contam do PS, jamais lhe confiarão um voto. Enquanto o PS arrastar as suas promessas em torno de um fim da austeridade que só a fé ideológica legitima, poucos acreditarão na sua competência e capacidade para governar. Costa ainda tem muito tempo para mostrar o que vale. Mas mais umas semanas nesta posição hesitante e medrosa poderão ser fatais. Não apenas para a obtenção de uma maioria como até para uma simples vitória.
2. Nesta pobre leva de titulares de cargos políticos associada aos anos que nos levaram às portas da bancarrota não há muitos ministros com direito a ficar na História. José Mariano Gago é seguramente uma excepção. Porque foi o homem de um projecto de transformação para o país no qual acreditou e pelo qual se bateu com persistência, zelo e talento. Para ele, o Portugal periférico, pobre em recursos naturais, com uma sociedade civil anémica e um Estado ora paternalista, ora castrador, precisava de um choque de ciência para se superar. As suas passagens pelos governos de António Guterres e de José Sócrates foram o lugar e o tempo para desenvolver esse combate. No final do período, Portugal dera um salto extraordinário no seu sistema e nas suas competências científicas. Uma rara e profunda transformação na qual deixou uma marca indelével.
Muitos dirão que a sua ambição padecia de um delírio megalómano, que tinha como ponto de partida o enxerto de um país avançado no corpo de uma nação arcaica. Alguns dos indicadores da ciência podem legitimar essa crítica. A ciência em Portugal permanece no reduto das universidades ou dos laboratórios do Estado e tarda em chegar à administração pública ou às empresas. Mas talvez seja também útil pôr a pergunta ao contrário: se o país de hoje não fosse o que é em termos de qualificação e de ciência, será que o ajustamento que sofremos não teria sido pior?


É no balanço destas interrogações que devemos situar a obra e o legado de Mariano Gago. Acreditar na irreverência e no inconformismo, pensar que o futuro exige visão e ousadia são virtudes que todos os grandes estadistas partilharam. Hoje, o sistema científico não dá ainda ao país o que o país nele investiu. Mas é uma questão de tempo. Viver numa sociedade onde a ciência é um bem estimado e apoiado é muito melhor do que definhar num país onde as visões de futuro se limitam ao curto prazo. José Mariano Gago acreditava nisso e bateu-se por isso com sucesso. Foi um dos homens de Estado mais extraordinários do Portugal das últimas décadas.

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