domingo, 15 de março de 2015

Participação em tempos de raiva

Ao longo dos tempos, Helena Roseta habituou-nos nas suas intervenções públicas na SIC Notícias, a avalanches de Indignação e erupções de Raiva, enquanto o seu conformismo tácito e sua estratégia de coligação eram evidentes e ilustrados por uma mansidão inquestionável e por uma ausência total de crítica perante os seus aliados, Costa e Salgado.
Últimamente, e acentuadamente desde a tomada de posse como “Presidenta” da Assembleia Municipal, a sua atitude e consequentemente a posição dos CPL tem sido abertamente crítica. Distanciamento este culminado com o confronto directo com Salgado no caso do Benfica.
Que “Participações” ambiciona então a intrépida, tenaz e audaz Roseta para o Futuro ?
OVOODOCORVO

Participação em tempos de raiva
HELENA ROSETA 15/03/2015 - PÚBLICO

É preciso passar do écran para as ruas e das ruas para as urnas.

Ao contrário do que muitas vezes oiço dizer, as pessoas não andam resignadas nem apáticas. Estão descrentes e revoltadas, embora nem sempre o exprimam ou manifestem. Vivemos tempos de raiva, uma raiva surda que pode explodir subitamente.

Raiva contra as políticas austeritárias que não resolveram os problemas do país e agravaram as desigualdades; raiva contra o vexame do protectorado europeu sob o comando da Alemanha e a subserviência do governo português; raiva pelo cinismo de um Primeiro-ministro que reivindicou para si uma indulgência oposta à intransigência que nos impôs; raiva pela impunidade da grande corrupção, desde o buraco do BES aos vistos gold; raiva pela pusilanimidade da nossa suposta “nata” empresarial e banqueira, capaz de destruir valor com uma leviandade que nunca imaginámos possível; raiva pela lentidão da justiça e pela banalização e saturação da paisagem televisiva, como se todos os canais, sujeitos à ditadura das audiências, acabassem por ser um só; raiva finalmente pelo desconforto perante o fosso entre quem nos representa, ou devia representar, e a maioria dos portugueses.

Face a este acumular de tensões e frustrações, há indignação, revolta e cansaço. Mas as crises da democracia só se resolvem com mais democracia, o que implica mais e melhor participação dos cidadãos. E não se diga que os portugueses não participam. Fazem-no nalgumas condições: quando acreditam que podem mudar alguma coisa – como se viu no caso de sucesso que foram as primárias do PS, mesmo que haja quem já se sinta insatisfeito com o caminho feito desde então; ou quando sentem que ninguém defende eficazmente a sua causa – como é patente na mobilização dos indignados e enganados pelo papel comercial do BES; ou ainda quando uma causa maior os leva a acreditar na utopia, como sucedeu com o movimento por Timor em 1999.

A participação tem contudo os seus riscos e os seus limites. Ela não substitui a democracia representativa, antes deve complementá-la, o que em Portugal é muito difícil. A participação pode estimular populismos ou conduzir à desilusão. E nem tudo o que é participativo é bom – já vi, por exemplo, movimentações muito participadas pedindo à autarquia que remova pessoas sem abrigo como se fossem lixo.

Ao longo dos últimos anos, vivi por dentro inúmeros movimentos e processos participativos. Posso por isso testemunhar as principais dificuldades que sentimos. Em primeiro lugar, a questão da continuidade. É relativamente fácil mobilizar gente para um assunto específico com um calendário próximo. Fazê-lo em torno de causas mais gerais é muito mais difícil. As pessoas gostam de tomar posição, mas depois não têm tempo ou paciência para alimentar processos que podem ser demorados e desgastantes. Também é complicado lidar com questões de liderança, mas sem uma estratégia reconhecível num rosto os processos participativos tendem a esgotar-se, ou a cindir e pulverizar-se. O amadurecimento e consolidação de movimentos participativos mais ou menos espontâneos não dispensam uma liderança legitimada, uma avaliação crítica e resultados palpáveis.

Outra dificuldade, banal, é a do suporte logístico e financeiro. Ir à net pode ser de graça, mas o uso de espaços, a promoção de eventos e a mobilização de pessoas tem custos, em tempo e dinheiro. A legislação portuguesa sobre associações é completamente obsoleta. Em vez de incentivar, espartilha e dificulta, num resquício controleiro dos tempos do regime ditatorial.

O espaço da intervenção política, por essa Europa fora, está em mutação. Mudam as fronteiras ideológicas, mudam as bases de apoio, crescem novos tipos de confrontação para lá do velho binómio esquerda/direita. O líder do Podemos em Espanha fala nos de cima e nos de baixo, por exemplo; outros falam de incluídos e excluídos, ou os de dentro e os de fora. Pela minha parte costumo usar como critério para a separação de águas uma adaptação pessoal da máxima “in dubio pro reo”, que traduzo por “na dúvida, pelos pequeninos”. Quando estão em jogo múltiplos interesses, como sucede na gestão de uma cidade, este critério tem-me sido bastante útil. Sabemos sempre quem são “os pequeninos”. E mesmo que não tenham toda a razão, merecem uma discriminação positiva quando possível.

A participação não pode esgotar-se no próprio acto de participar. Não basta encher a net de petições e abaixo-assinados, ou o facebook de “likes”. É preciso passar do écran para as ruas e das ruas para as urnas. E é preciso, quando se consegue aceder a um cargo político eleito, ser capaz de fazer a diferença e de fazer diferente. Só assim se poderá transformar a participação em tempos de raiva na energia criadora que falta inocular na nossa democracia decadente.


Arquitecta.Texto baseado na intervenção feita em 13.3.2015 no Congresso da Cidadania, promovido pela A25A

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