terça-feira, 17 de março de 2015

Para José Gil pensar voltou a ser uma questão de vida ou de morte / O que o país precisa é de acção, mas isso não está na prática e no estar dos portugueses, avisa o ensaísta / Por Luís Osório


Para José Gil pensar voltou a ser uma questão de vida ou de morte

O que o país precisa é de acção, mas isso não está na prática e no estar dos portugueses, avisa o ensaísta

Por Luís Osório publicado em 14 Mar 2015 in (jornal) i online

Não o via há alguns anos. Encontrámo- -nos, também por isso, na Gulbenkian. Há lugares que não mudam, lugares previsíveis de encontro que nos poupam a introduções que nos matam tempo. Não perdemos muitos minutos. Entrámos logo numa conversa em que o ponto de partida era a constatação, minha e dele, de que pensar voltou a ser uma questão de vida ou de morte. Fomos, foi, por campos difíceis, arriscados. Pela política e o amor. Pela felicidade e o mal. Pelo pensamento e a morte. Pelos poderes que temos e os perigos que corremos. Uma conversa que me ficará para sempre, uma entrevista para memória futura.

 Um dia disse que pensar não era um tema, pensar era uma questão de vida ou de morte.

Disse-o na minha juventude, em Paris.
A urgência de pensar…

Não chegámos a um tempo em que essa urgência voltou a ser de vida ou de morte?

Ah, sim. E não só para nós portugueses, para todos, europeus em particular. Temos de pensar numa nova teoria do poder, uma nova organização que repense a democracia.

Matar a democracia? Substituí-la por um outro nome?

Não sei, isso decorre do próprio pensamento porque é este que encontra a expressão do conceito. Um pensamento sobre as forças – hoje, tudo é uma questão de forças, de poderes, de guerras, violência, crime. Tudo é força e não há teorização das forças em nenhum plano disciplinar na filosofia. São difíceis de conceptualizar, estamos como o antropólogo diante das sociedades primitivas.

É dos conceitos mais utilizados pelas sociedades primitivas. As forças, também sobrenaturais, exercem o poder.

Isso. Falamos da teoria da representação, da imagem, mas do conceito de força não temos nada. Pouco ou quase nada, talvez Espinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze e pouco mais. Não é por acaso, porque os filósofos que o fizeram subverteram o que existia, viraram o pensamento académico de pantanas, foram ou tornaram-se inqualificáveis. Há qualquer coisa ligada a este conceito de forças que é ferozmente subversivo.

Uma pulsão do mal em nós?

Não necessariamente. O mal tem uma história muito complicada, a sua dinâmica vem de trás, não apareceu do nada, apareceu de pensamentos e acções que, muitas e muitas vezes, tinham uma boa intenção. O mal pode nascer do bem.

Vamos falar de Portugal. De que precisamos? De novas acções, de novas palavras?

Precisamos de acção, que não está na prática e no estar dos portugueses. Não tem a ver com a identidade, mas com mentalidades que foram forjadas, sedimentadas durante muitas décadas, não fomos sempre assim. De um modo ou de outro, nos portugueses não existe a vocação imediata da acção. Pensamos, ponderamos, voltamos a pensar e não saímos da não acção.

Um país de poetas.

Sim, mas essa é a nossa parte boa. É bom sermos um país de poetas porque isso nos obriga a ir mais longe e a desafiar um pensamento positivista. A dimensão de sonho não mata necessariamente a acção, pode até potenciá-la. Temos de nos abrir a qualquer coisa de que tenhamos medo, forças do exterior que nos obriguem a pensar onde estamos.

E está optimista?

Há sinais que não me permitem ser optimista. Veja o que aconteceu em nós com a explosão do Syriza: não aconteceu rigorosamente nada. Se nos compararmos a outros países, a começar por Espanha ou França, não aconteceu coisa alguma. Apenas palavras vagas, piadas que os compararam a uma brincadeira de crianças. Muito poucos problematizaram com a importância que o fenómeno poderia ter para uma abertura do pensamento, independentemente das ideologias. O povo grego não votou no Syriza por serem de esquerda; eles transportaram uma coisa mais importante, a esperança de que a verdade não pode ser adquirida, pode e deve ser dinâmica.

Voltou a discutir-se ideologia.

A discutir-se política, a problematizar-se, a colocar-se em causa. Isto tem a ver com os nossos investimentos inconscientes: vamos imediatamente para o que nos convém sem que percebamos as razões.

O seu “Medo de Existir” está mais actual hoje do que no dia em que foi editado, já lá vão dez anos.

Não sei se mais actual... A crise talvez tenha acentuado a ideia. Há vários planos, mas talvez o mais relevante nestes tempos tão difíceis seja o medo de perder o emprego, de não ter dinheiro, de deixar de ter possibilidades para os filhos, de não ter futuro. Tudo isso vai amplificar o outro medo, mais colectivo, que defino como o medo de existir. Uma alma colectiva que se vai esbatendo, perdendo luz, perdendo esperança, perdendo sonho e futuro.

E as âncoras vão diminuindo. Cresci na ideia de que o território político deveria ser ocupado pelos melhores, pelas elites. Porém, ao ver o que se passou no BES com Ricardo Salgado, com Zeinal Bava na PT…

Percebemos que as elites estão comprometidas.

Exactamente. As elites falharam. Em Portugal sofremos de um fenómeno comum às elites portuguesas: a enorme promiscuidade que existe entre a política e os outros domínios da inteligência e do saber. Há comentadores políticos que falam de tudo; de cinema, literatura, futebol, filosofia, história, tudo. Cada uma dessas disciplinas deveria ter o seu domínio de autonomia. Depois podia sair e comunicar, mas não… Há uma mistura, os políticos e os personagens mediáticos falam de tudo como se fossem tudo. Isso leva-nos a uma promiscuidade nefasta e a um pensamento de superfície. Eu próprio já deslizei algumas vezes, não muitas.

Percebeu-o?

Sim. E pensei que me estava a desviar do meu caminho. Mas quanto ao que estávamos a falar, acredito que é vital caminharmos para uma especificidade da função política, e isso existe pouco. E quanto às elites, convenhamos, os nossos políticos, com duas ou três excepções, não pertencem à elite. São homens normais. Temos, hoje, a urgência de encontrar homens fora do seu tempo, fora da superfície, que sejam excelentes no seu género, não comentadores deste mundo e do outro. E sem medo de existir.

O primeiro-ministro está nesse rol?

Passos Coelho tem medo de existir, não é um líder capaz de mobilizar a excelência. E António Costa está a um passo de não ser também o homem de que precisamos, ainda não conseguiu ser líder aos olhos das pessoas, um problema que tem de resolver. E o tempo estreita-se. Se não o resolver, tudo ficará comprometido, tudo. O líder não é apenas o que propõe boas ideias, é o que faz criar um entusiasmo, um carisma, um choque, e é receptor de forças maiores e superiores – mas não qualquer força, porque algumas não transformam o mundo para melhor, algumas são nefastas e criam líderes populistas. Tem de encontrar as forças certas, aglutiná-las e libertá-las numa força maior. Aí será um líder.

Ficaria admirado se Passos Coelho ganhasse as eleições outra vez?

Não ficaria surpreendido. Seria o resultado de dois factores. Significaria o falhanço da oposição, o falhanço de Costa.
O segundo factor é a volatilidade do povo português, a facilidade com que muda de posição. Somos voláteis e vivemos numa espécie de banalização constante, já não damos importância ao que é realmente importante, já não distinguimos bem o que é importante do que é acessório. Quais os mecanismos para que isso aconteça? Temos de analisar, mais uma vez as forças, desta vez força negras que afastam tudo o que possa ser conflito. É uma força poderosa, talvez a mais poderosa de todas.

A força que nos empurra para a ausência de conflito.

Qualquer que ele seja. Estrutura a vida comum, a relação entre as pessoas, a relação social. Ficamos prostrados na ausência de acção, preferimos não nos mexer se nesse movimento pudermos entrar em conflito com alguém. É um mar morto.

Vemos pelas nossas crianças. Já não brincam na rua porque os pais têm medo de que lhes possa acontecer alguma coisa.

Absolutamente.

Há uns tempos, num colóquio em Macau, voltou ao seu “Medo de Existir”, mas incluiu uma palavra que, julgo, lhe é cara.

O desejo.

Sim, a palavra “desejo”. Qual é então o mais forte: o medo de existir ou o desejo de o superarmos?

Temos de responder primeiro a uma outra pergunta, a de qual o momento decisivo. Se o momento decisivo é o que abre para o que é poderosamente recalcado (o desejo de existir), então é o desejo o mais importante. Se, pelo contrário, esse momento se revela, no final das contas, não decisivo, são as forças negativas que ganham. Mas o que é mais forte é, sem qualquer dúvida, a força do desejo.

A ideia de felicidade, neste sentido de que estamos a falar, não é uma ideia reaccionária? No fundo, somos moldados pela ideia de que a felicidade é possível e, ao percebermos que não é, de-senvolvemos frustrações.

Temos de limpar o terreno conceptual em que se construiu a ideia de felicidade. Felicidade não é, como nos diz uma tradição de pensamento dominante, uma combinação sábia de prazer. Entendo a felicidade como um terreno que permite todos os prazeres vividos com a maior intensidade. Nesse aspecto, ser feliz não é um estado de espírito, mas uma disposição geral que faz com que cada prazer, e cada dor, sejam subordinados ao prazer de existir. Não é o prazer agradável de uma cerveja numa tarde de Verão, de um bombom, é o prazer da existência antes de mais. A felicidade é isso. É uma promessa de alegria. Há uma relação íntima entre a felicidade e a alegria. Uma criança que vai para a água na praia e que ri muito: nós dizemos ser evidente que está feliz, como poderia não estar? Claro que está, porque a criança está precisamente a existir na intensidade com que se predispõe para a vida.

Interessante. E surpreendente. Pensava que me falasse de política.

Mas falo de política, sem dúvida. Porque a felicidade é também uma reivindicação política. Deveria ser a reivindicação de uma vida feliz em comunidade, a predisposição de uma comunidade para viver intensamente, para existir intensamente. A felicidade não é egoísta.

Creio que a primeira vez em que esteve com, e viu, Gilles Deleuze, ele estava precisamente a falar do desejo.

Sim, estava a experimentar “O Anti-Édipo”. Lembro-me muito bem dessa tarde em Paris. Uma coisa fabulosa de pensamento comum, de partilha, de felicidade, claro. Havia psicanalistas armados de teoria, havia dementes de asilo, recordo que um deles confrontou o Deleuze com a sua incompreensão da loucura.

É um tema que lhe interessa, o da loucura?

Um tema fundamental, porque há uma correlação entre o pensamento e a loucura.

Como há da alegria para a felicidade.

Um pouco a mesma coisa. No pensamento devemos passar fronteiras de realidade. E voltar. Por vezes é difícil regressar, há quem não volte. Muitos psiquiatras heterodoxos viram existir um trauma entre certas experiências traumáticas e a descoberta. Os sonhos de Kepler, do Descartes, de Wittgenstein: após um trauma há uma pujança que pode ser fértil para a criação de um mundo que não existia. Pode existir então um trauma que seja fecundo e outro que nos transporta para o asilo. Estou convencido de que Fernando Pessoa estava constantemente em estado de trauma…

Isso é novo.

Sei isso. Mas existe uma correlação entre a sua louca criatividade e os traumas da sua vida pessoal.

O tempo tem-me ensinado que todas estas coisas não podem ser ditas muito alto.

Também a mim, Luís. O mundo tenta domesticar quem pensa o que não é o pensamento único.

Já o tentaram domesticar?

Ah, sim. Já. E fiquei doente. Mas doente real, de cama. Estou convencido de que muitas doenças que se manifestam nos professores, em artistas, nos funcionários, têm a ver com a domesticação que nos querem impor. Há uma patologia da sociedade portuguesa no sentido da domesticação, é o que faz a diferença da sociedade portuguesa antes e depois da troika. Uma das coisas que mais me impressionaram da polémica aberta com as declarações de António Costa…

Declarações no encontro com chineses?

Sim, essas. O facto de existirem pessoas, à esquerda e à direita, que, no rescaldo, discutiram e se confrontaram com estatísticas. Nenhum pensou no tónus de vida, no que aconteceu aos portugueses nestes quatro anos. Foi tremendo do ponto de vista existencial, tremendo. Não estamos melhor, meu Deus. Não estamos melhores, como poderíamos estar? Mesmo para os que não gostaram das declarações de António Costa, para os que as sentiram como um murro no estômago, foi um murro no sentido errado. Atacaram-no com estatísticas de desemprego e tudo o resto. Perguntou-me de que precisamos? Precisamos de pensar um bocado nisto. Porque não começamos por aqui?

É possível um intelectual existir tendo uma cadeia de dependências?

Não é possível. Diria que estamos cheios de intelectuais, já temos tantos... Todos são intelectuais, todos falam de tudo e do nada.

O que raio é ser português?

Eu não sei. Quando me falam nisso, quando querem fazer de mim um especialista de identidade portuguesa, recuo sempre. Não tratei da identidade portuguesa, penso sobre mentalidades que são transitórias por natureza. Não sei qual é a identidade portuguesa.

Mas tal acontece por nos faltarem âncoras e, nesse sentido, o senhor é uma das poucas que ainda existem em Portugal.

Compreendo, mas é um equívoco para o qual eu contribuí, disso não tenho dúvida…

Que equívoco?

Há um traço que já não é transitório, pois estamos há demasiado tempo nele. Falo do chico-espertismo, expressão que não precisa de tradução; não podemos dizer que é a própria identidade portuguesa.

Ao fim de muito tempo, o que é transitório não se pode transformar na própria identidade?

Levar-nos-ia muito longe. Mas tem razão, sim. É assustador pensá-lo. Quando há problemas de identidade de um povo, isso gera mal-estar, uma patologia.

Não é descabido pensar que o país se deveria deitar num divã?

Só se estivermos certos do rigor da psicanálise.

Nesse tema, penso também no discurso político. Há 20 anos, o discurso era mais elaborado; hoje, só e possível ser ouvido se existir sob a forma da frase curta. Os políticos estão condenados à superficialidade?

É o que está a acontecer. Isso tem a ver com a acção que se conjuga ao discurso e que depende do modo como se quer parecer mediaticamente. A ditadura dos media mais poderosos impede-nos de pensar; deixou de ser necessário analisar a mensagem porque os media são a própria mensagem. É um poder sem problematização.

Porquê?

Porque a problematização implica recuos que não são permitidos. O tempo da televisão não permite o vazio. É um horror total e absoluto ao vazio, um horror que impede de pensar. A superficialidade é uma poderosa chapa em relação ao pensamento.

É preciso ter a coragem de dar às pessoas aquilo de que elas precisam, não o que elas querem.

Tenho tendência a concordar. Embora seja uma afirmação perigosa, pois não sabemos do que as pessoas precisam. Temos de encontrar um caminho para perceber o que elas precisam, não o que achamos que elas precisam.

O que vê na televisão?

Estou reduzido às notícias e a uns programas de debate.

É possível existirem revoluções sem idealismo?

A que chama idealismo?

A convicção colectiva de que a transformação deve ser feita num determinado sentido.

Nós, aí, aprendemos com a história. Seguindo a sua definição, diria que aprendemos que a convicção não pode entrar para o campo do absoluto porque o absoluto é, por definição, totalitário. Temos de ter outras convicções, as nossas ideias têm de abrir para a possibilidade de outras convicções, e isso tem de estar inscrito no programa de acção.

Acabamos como começámos. Onde enquadra o fenómeno Syriza na Grécia?

Olhe, vejo-o como um esboço feliz do que lhe disse. O Syriza não é totalitário, é um conjunto de uma série de grupos políticos e a sua experiência foi a de integração de ideias, de compromissos. Tsipras disse de si próprio ser um marxista errático – o que é isso? Um marxista errático não é um leninista, muito menos um estalinista. Um revolucionário, hoje, é uma surpresa, está em embrião em gente como o Tsipras ou o Varoufakis, mas não sabemos. Eles próprios não sabem.

Sabemos pouco sobre as respostas às grandes perguntas, mas sabemos que, quando descobrimos a resposta a uma questão definitiva, nascem dez perguntas que não existiam antes.

E isso não pára. E quando pára é em patamares, etapas de uma progressão que não é linear. A história não é feita de uma causalidade, é feita de acasos, de equívocos.

Ficaria surpreendido se daqui a uns anos, que espero longos, encontrasse Deus?

Interessei-me muito pela questão de Deus, não por uma tendência religiosa ou mística, mas de exploração de uma série de limites do pensamento filosófico. E até elaborei provas da existência e da inexistência de Deus.

Ainda tem esses papéis?

Tenho. A minha posição não é a de um ateu. Não me interessa dizer qual a minha posição, mas como cheguei lá. Mas digo--lhe que o Papa Francisco é um personagem extraordinário, uma força impressionante, alguém em que eu vejo poderosas forças positivas, nada é reactivo nele.

Deixou o marxismo muito cedo.

Sim, na juventude.

E o jazz?

Não, não, não. O jazz acompanhar-me-á até ao fim.

O amor ainda salva?

O amor ainda salva. Quando deixar de salvar, não é amor. Mas teríamos de pensar melhor sobre o conceito.

Qual é o seu lugar? Reconhece-o?

Tenho dificuldade, não sei. É o lugar natal? É o útero da mãe? É a matriz original?
A que lugar se refere? Ao lugar em que entro numa espécie de meio amorfo de felicidade ideal e inexistente? Então, não me interessa um lugar assim. Se o lugar que procuro é realizável, apesar de utópico, então sim.

Que certezas tem?

Que há forças de positividade nas quais me sinto bem, em que acredito. E que há forças mortíferas, não diria do mal, mas mortíferas. Tenho a certeza de que temos de perceber onde estão umas e outras.

Se tivesse de escolher apenas um tema para uma última dissertação, que tema escolheria?

O corpo e o inconsciente. E isso implicaria o mundo inteiro.

Valeu a pena ter vivido?

Sim, claro. Claro. O que é extraordinário na felicidade, que eu não tenho, é que não entra nela nem rancor, nem inveja, nem ciúme. Na felicidade não entra nada que seja reactivo. Quando chegamos a este ponto, e de vez em quando chegamos, é uma alegria extraordinária.

E a saudade?


A saudade não passa de uma beleza literária.

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