terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O que tem Harrison Ford a ver com as mudanças do clima?


O que tem Harrison Ford a ver com as mudanças do clima?

Estrelas de Hollywood e jornalistas foram à procura de histórias que mostram o impacto do aquecimento global. O resultado é Anos a Viver Perigosamente, que se estreia hoje no canal Odisseia

“O ministro estava à espera que o Harrison Ford chegasse lá e lhe desse um aperto de mão ou tirasse uma fotografia para emoldurar”, recorda Adam Bolt. O que se passou “não podia estar escrito num guião”

Televisão Marisa Soares, em Madrid A jornalista viajou a convite do canal Odisseia
28-1-2015 / PÚBLICO



 Jacarta, capital da Indonésia, Ministério das Florestas. Harrison Ford entra no gabinete do ministro Zulkifli Hasan para uma entrevista que ameaça descambar. O actor conta que esteve no Parque Nacional de Tesso Nilo e o ministro solta uma gargalhada. “Não tem graça”, responde Ford, lutando para se manter agarrado à cadeira. Atrás da secretária, Hasan mantém o sorriso, enquanto explica como permitiu a destruição de milhares de hectares de floresta para produzir óleo de palma, apesar de haver uma lei que o proíbe.
Este podia ser o guião para mais um episódio da saga de Indiana Jones, mas não é de ficção que se trata. A cena é uma das mais tensas da série documental Years of Living Dangerously/Anos a Viver Perigosamente que se estreia hoje em Portugal no canal Odisseia, no cabo, às 22h30, e vai ser difundida todas as quartas-feiras até 25 de Março.
Em nove episódios de uma hora, algumas das maiores estrelas de cinema e jornalistas norte-americanos percorrem o mundo à procura de histórias reais que mostram o impacto do aquecimento global — como a desflorestação na Indonésia, a seca no Texas ou a destruição causada pelo furacão Sandy, na costa leste dos EUA. Porque, como diz Adam Bolt, um dos produtores e montador da série, os efeitos das alterações climáticas “já estão a acontecer e não afectam apenas os ursos polares”.
Anos a Viver Perigosamente, que recebeu o Emmy de Melhor Série Documental em 2014, é o resultado da reunião de alguns dos nomes mais respeitados no meio do cinema de Hollywood, desde a produção — a cargo de James Cameron, Arnold Schwarzenegger e Jerry Weintraub, entre outros — até aos melhores técnicos de imagem, gráficos e fotografia. Conta ainda com um elenco de luxo, como o próprio Schwarzenegger, Harrison Ford, Matt Damon, Michael C. Hall (protagonista de Dexter), Jessica Alba e Don Cheadle, e jornalistas como Thomas L. Friedman (colunista do The New York Times e vencedor de um Pulitzer), Lesley Stahl e Chris Hayes, entre outros.
“Foi fácil convencê-los, difícil foi conciliar agendas”, admite Adam Bolt, montador e membro da equipa de produção, que esteve na semana passada na apresentação da série aos jornalistas ibéricos, em Madrid. Bolt — que aos 31 anos tem já um Óscar pela produção de Inside Job — A Verdade da Crise, considerado Melhor Documentário em 2010 — espera que as celebridades consigam atrair a atenção das pessoas que normalmente não ligam ao tema. “Quisemos ter os melhores contadores de histórias de Hollywood, para, quando as pessoas estiverem em casa a fazer zapping, pararem no canal e pensarem que é um novo episódio de Mad Men ou de Guerra dos Tronos.”

Escândalo na Indonésia
Ainda antes da estreia em televisão nos EUA, em Abril do ano passado, a série já tinha dado que falar na imprensa internacional. É que a entrevista de Harrison Ford a Zulkifli Hasan descambou mesmo. “Foi um escândalo na Indonésia, o ministro ameaçou deportar toda a equipa”, conta Adam Bolt.
O governante reagiu mal às perguntas que o actor levava na ponta da língua, depois de passar duas semanas com a população local no Parque Nacional de Tesso Nilo, nas ilhas de Sumatra e Bornéu, onde assistiu à queima de milhares de árvores para a plantação de palmeiras.
Antes de voar para a Indonésia, no primeiro episódio intitulado Estação Seca, Ford foi ouvir o que dizem os cientistas: 40% das emissões dos gases com efeito de estufa resultam da desflorestação, uma vez que as árvores são sequestradoras de carbono. Quando morrem, o carbono é libertado para a atmosfera. Em Tesso Nilo, quase 80 mil dos 86 mil hectares do parque foram já destruídos, pondo também em perigo espécies à beira da extinção como os elefantes e os tigres de Sumatra.
“O ministro estava à espera que o Harrison Ford chegasse lá e lhe desse um aperto de mão ou tirasse uma fotografia para emoldurar”, recorda o produtor, sublinhando que o que se passou no terreno “não podia estar escrito num guião” antecipadamente — ainda assim, Bolt foi nomeado para o Emmy da Melhor Escrita para Programa Não-Ficcional.
A escolha dos participantes e das histórias a relatar não foi aleatória. “Fomos atrás de celebridades que tivessem já algum compromisso com questões ambientais”, diz Bolt, acrescentando que os locais das filmagens foram decididos em conjunto entre a produção e os actores e jornalistas.
Harrison Ford, por exemplo, pertence à direcção da organização Conservation Internacional, que tem lutado contra a desflorestação na Indonésia. O protagonista de Dexter, por outro lado, quis sair da “bolha” onde vive, em Hollywood, para ir ao Bangladesh ver como está a população a enfrentar o aumento do nível do mar, que poderá “engolir” 17% do território daquele país até ao fim do século, obrigando à deslocação de 20 milhões de pessoas.
Já o jornalista Thomas L. Friedman viajou até ao Médio Oriente para perceber a relação entre as alterações climáticas e a guerra na Síria ou as tensões no Egipto. No último episódio, Friedman entrevista o Presidente dos EUA, “a pessoa mais difícil” de convencer a participar no projecto. “Foi a primeira vez que ele se sentou em frente às câmaras e falou em exclusivo sobre as alterações climáticas”, afirma Bolt, orgulhoso do feito, que a equipa faz questão de publicitar no site do projecto.
Se na Europa poucos põem em causa as alterações climáticas, nos EUA não faltam vozes cépticas, incluindo de líderes políticos. Por isso, ter Barack Obama a dizer perante as câmaras “isto é real, vamos parar de discutir sobre isso e começar a pensar na solução” foi uma grande vitória para a equipa. “O nosso objectivo não é que esta série vá mudar o mundo. Mas sentimos que podemos ser mais uma peça a pressionar os governantes e as empresas, de uma forma diferente dos grupos ecologistas, por exemplo.” É impossível não comparar Anos
a Viver Perigosamente ao documentário Uma Verdade Inconveniente, de Davis Guggenheim, que rendeu um Nobel da Paz a Al Gore em 2007.
“Tenho um grande respeito por esse documentário, que teve um grande impacto, mas depois chegou a crise económica e os cépticos ganharam terreno”, considera Adam Bolt.
O produtor espera que este projecto possa relançar o debate sobre as alterações climáticas e pressione os governantes, mesmo a tempo da nova conferência das Nações Unidas em Paris, marcada para Dezembro deste ano, da qual deverá sair um novo tratado climático. “Este é o momento para agir”, reforça.
Essa é também a convicção de Jesús Fidel González-Rouco, principal autor do quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas. O investigador foi um dos consultores científicos da série. “O aquecimento global é um problema amplo e multidisciplinar”, afirma, defendendo que também o cinema tem um papel a desempenhar na procura da solução.



365 dias de gravações
Anos a Viver Perigosamente é, pode dizer-se, “filho” do programa jornalístico da CBS 60 Minutos, no qual David Gelber e Joel Bach, criadores da série, trabalharam como produtores. “As histórias sobre as alterações climáticas iam ficando perdidas no meio de outros temas menos sérios. Quanto mais sabiam sobre o assunto, mais percebiam que este era o tema mais importante”, relata Bolt.
Da ideia até ao produto final passaram quatro anos. Para montar o resultados das filmagens — 365 dias de gravações — foram precisos sete montadores, a trabalhar durante mais de um ano, com um orçamento “muito caro” para um documentário (que o produtor não revela). E, porque ainda ficou muito por contar, promete uma segunda temporada. Para a directora do Odisseia, Pilar de las Casas, esta série documental é “o lançamento mais importante” do canal no primeiro trimestre de 2015. “Reúne todos os valores que defendemos: qualidade, entretenimento e compromisso”, afirma.



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