segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

“Esta crise é pior que a guerra. A guerra sabíamos que ia acabar

Vendo que há uma pessoa com um bloco a escrever o que algumas pessoas dizem, um homem imponente põe o dedo no ar e diz que quer dar uma “curta entrevista”: na verdade vai ser uma declaração sem direito a perguntas. “Escreva que os políticos gregos traíram o país e venderam-no para ganhar comissões e nós é que estamos a pagar. Somos orgulhosos e nunca vamos perdoar os seus erros e o colapso da economia grega. Diga que quem disse isto foi um economista anónimo.”

“Esta crise é pior que a guerra. A guerra sabíamos que ia acabar
Na clínica solidária de Atenas há gregos envergonhados e zangados. Alguns conseguem ajuda, outros não, porque estar doente na Grécia hoje é estar-se “condenado”

“Estamos de tal modo mal que o Syriza pode aliviar alguma coisa. As pessoas querem só que a sua vida mude um bocadinho para melhor”

Reportagem Maria João Guimarães e Miguel Manso em Atenas / 19-1-2015 / PÚBLICO

 Um dentista anarquista trata uma mãe desempregada de graça, uma reformada que nunca recebeu a reforma e vive da pensão da mãe não está especialmente orgulhosa de estar aqui, refugiados sírios causam um momento de descontracção, um economista zangado faz uma declaração. Tudo isto na pequena sala da policlínica e farmácia comunitária de Atenas. Hoje é dia de distribuição de medicamentos e enquanto se espera para ver quem tem sorte e quem não tem, saúde e política misturam-se.
Lá fora, na fachada de um edifício normal no meio das ruas com nomes de filósofos e dramaturgos, de Sócrates a Aristófanes, apenas um autocolante vermelho na campainha do terceiro andar indica que ali funciona a clínica.
A sala começa a encher pelas 13h e pouco; às 14h começa a distribuição de medicamentos. A farmácia, uma sala com prateleiras e as caixas de medicamentos bem arrumadas, tem muita coisa, a maioria remédios que sobraram de pessoas que os doaram — ou porque familiares morreram, ou porque não precisaram de todo o tratamento. Mas quem aqui vem, vem sem certezas: pode haver o que precisa, ou não.
Constantino Kokossi, reformado do Ministério dos Negócios Estrangeiros (todos os que trabalham aqui são voluntários), pega nas receitas e orienta a sucessão de pessoas. Dali a pouco a sala está cheia, cheia. Não vão sair daqui só medicamentos: uma família de sírios que vem buscar leite em pó para um bebé acaba por levar também um brinquedo, e entre discussão sobre o tipo de leite e instruções sobre como montar o brinquedo já há muita gente a rir.
Aqui passam pessoas que não têm seguro de saúde ou segurança social — na Grécia há um sistema misto entre o serviço de saúde público e seguros privados (normalmente pagos pelo empregador), quem está desempregado deixa de ter serviço nacional de saúde após três meses (com um taxa de desemprego de 25% e de desemprego jovem de 50%, isso é um problema). Vêm para consultas ou para buscar medicamentos. Às vezes é possível que a policlínica ajude — há até um consultório de dentista. Há médicos especialistas que recebem algumas pessoas por indicação da policlínica nos seus consultórios. Mas demasiadas vezes não é possível fazer o que precisam. Cirurgias, não é possível. Exames de laboratório também não.
Ainda tentam “jogar” com as regras, que as pessoas entrem no hospital no dia da urgência (cada hospital tem um dia para emergências). “Mas vem o contabilista do hospital e pergunta: tem seguro? Então não pode ser operado.” Constantino diz que há casos de pessoas que iam começar a ser operadas mas já na sala de operação o responsável pelas contas do hospital vem decretar que não se pode operar. Em casos de acidentes graves, mal a pessoa acorda é-lhe perguntado pelo seguro. “Ou perguntam aos familiares, ‘Não tem seguro? Mas se calhar tem algo de valor, uma casa, por exemplo’”.
“É a tragédia grega”, comenta Constantino. Casos complicados como cancro, mesmo que haja por vezes medicamentos de pessoas que morreram, não vão ser tratados. “Somos testemunhas, mas não podemos fazer nada”, diz. “Essas pessoas estão condenadas.”
A situação da saúde na Grécia tornou-se tão precária que às vezes as pessoas chegam aqui enviadas pelos próprios hospitais, conta Constantino. Há doenças que já praticamente não existiam que estão a ressurgir com força. Pneumonia, varíola. Há demasiadas crianças que não são vacinadas.
Um raro caso de sucesso
Apesar de tudo a clínica, e outras semelhantes geridas por organizações como os Médicos do Mundo ou Médicos Sem
um problema de dentes. Depois de trabalhar cinco anos num restaurante de fast-food, está há dois anos desempregada. O marido recebe 750 euros de salário (“mas só de renda pagamos 300”), e tem um filho. Conta com a ajuda da mãe e da sogra, ambas reformadas. Katerina sempre votou no partido Nova Democracia, do primeiroministro Antonis Samaras. Desta vez, vai mudar. Pede o bloco de apontamentos para escrever o nome do partido: “Syriza”. Não quer que se saiba. Mas acha que seria “muito melhor” se o partido ganhasse. “Mais trabalho. Precisamos de trabalho.”
O dentista que a tratou não vota: “Vai contra as minhas convicções porque o problema está no sistema”, diz Giorgos, 25 anos, que vive com os pais e vai tendo trabalhos ocasionais em cafés, ou a distribuir panfletos (e ele próprio sem cobertura de saúde, nem seguro nem do sistema público). “Estamos de tal modo mal que o Syriza pode aliviar alguma coisa”, diz, embora não concorde com o partido. “E a maioria das pessoas também não vão votar porque concordem. As pessoas querem só que a sua vida mude um bocadinho para melhor.”
“Muitos dentistas foram para o estrangeiro porque é mais fácil encontrar emprego. Eu faço parte dos que decidiram ficar e tentar fazer o que conseguirmos aqui.” A sua motivação para estar na clínica é não só ajudar mas também não perder a ligação à profissão que escolheu, e que espera um dia vir a exercer.
Sem forças para “mudanças”
Outra Katerina, mais velha, olha à volta quando confessa o que vai votar: “Nova Democracia”, para acrescentar: “Devo ser a única aqui”. Katerina trabalhou 35 anos na Alfândega e reformou-se há um ano. “Ainda não recebi um cêntimo. Dizem-me que ainda estão a processar as reformas de 2012”, conta.
“Não tenho especial orgulho em estar aqui”, desabafa. “Mas tem de ser.” Katerina vive com a mãe de 81 anos e com a filha de 37, professora, que está desempregada. Três gerações de mulheres a viver com a reforma da mais velha. Por isso está aqui, vem buscar os medicamentos para a epilepsia que a mãe tem de tomar.
Mas não culpa o Governo. “Samaras fez algumas coisas. Não quero que todos os sacrifícios que fizemos tenham sido em vão. Não consigo pensar em fazer mudanças, não tenho força. Tenho medo — não quero voltar à dracma”, diz, a testa franzida sob os caracóis brancos.


Vendo que há uma pessoa com um bloco a escrever o que algumas pessoas dizem, um homem imponente põe o dedo no ar e diz que quer dar uma “curta entrevista”: na verdade vai ser uma declaração sem direito a perguntas. “Escreva que os políticos gregos traíram o país e venderam-no para ganhar comissões e nós é que estamos a pagar. Somos orgulhosos e nunca vamos perdoar os seus erros e o colapso da economia grega. Diga que quem disse isto foi um economista anónimo.”

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