domingo, 14 de dezembro de 2014

Teatro para evitar que mais uma loja centenária da Baixa se transforme num hotel


Teatro para evitar que mais uma loja centenária da Baixa se transforme num hotel
SARA OTTO COELHO / 13/12/2014 / OBSERVADOR

Há 100 anos que o número 223 da Rua da Prata é ocupado por uma drogaria. O Teatro das Compras atuou lá para evitar que a loja onde se faziam perfumes dê lugar a mais um hotel. Petição já circula.



O Teatro das Compras, que há seis anos leva encenações às lojas tradicionais no âmbito das Festas de Lisboa, regressou excecionalmente este sábado à drogaria S. Pereira Leão, na Baixa lisboeta. O objetivo é o de impedir que as portas da drogaria centenária se fechem a 31 de janeiro para ali nascer um hotel.

Perfumes avulso, sabonetes, ambientadores, cremes, detergentes, toucas, maquilhagem. Muitas promoções para escoar um stock que, no dia 31 de janeiro de 2015, pode não ter local para ser vendido. Em tarde chuvosa, entre as 16h00 e as 17h00 só uma turista espanhola entrou no número 223 da Rua da Prata, à procura de uma pasta de dentes. Ali bem perto, no número 181, o amplo espaço da loja Tiger era pequeno para a multidão que procurava a prenda de Natal ideal.


“Contra a crise, a drogaria S. Pereira Leão arranja sempre solução!“, disse uma das atrizes do Teatro das Compras, a meio da performance onde se imitava o passado da drogaria centenária. Durante 20 minutos, os poucos presentes puderam reviver através do teatro as memórias das verdadeiras funcionárias da S. Pereira Leão que ali trabalham há quase 50 anos. Tempos em que as “madames” se sentavam na drogaria e mandavam buscar o pó de arroz, o creme e o batom. Vestidas à moda antiga, as atrizes recordavam a Baixa dos armazéns Grandella, dos muitos fatos nas montras. “Agora mudou tudo, é só hotéis”, comentavam.



Fora da encenação, as três funcionárias e os três sócios aguardam por uma solução que teima em não chegar. Há seis meses, os sócios receberam uma carta que dava conta do novo projeto do proprietário do edifício: ceder o prédio a um novo hotel. Ali já só funciona a drogaria, uma vez que o prédio necessita de obras urgentes. Mas só deverão chegar depois desta fechar as portas, para que o hotel se possa ali instalar. Depois das obras, é certo que a renda irá subir.

“Os herdeiros têm deixado isto estar aberto, ao nosso cuidado, embora não esteja a dar muito lucro porque o negócio está todo mau. Mas as minhas colegas ainda precisam de mais alguns anos para a reforma e eles têm deixado isto aberto”, contou ao Observador Fernanda Silva, funcionária gerente da drogaria, cujos proprietários são os filhos dos primeiros donos, já falecidos. Das três funcionárias, só Fernanda Silva vai para a reforma. Olhando para a conjuntura, as outras duas trabalhadoras sabem o que as espera. Não têm ainda idade para a reforma, mas dizem que ninguém lhes vai dar trabalho.

A primeira dificuldade chegou há um ano, com “uma atualização de renda de 300 para 800 euros”, feito pelo senhorio juntamente com um contrato de cinco anos. “Só que cerca de meio ano depois disse-nos que tínhamos de sair a 31 de janeiro de 2015 porque ia fazer aqui um hotel”, disse. De acordo com Fernanda Silva, a sócia gerente anda a tentar negociar, através de advogados. “Para nos dar mais tempo, pelo menos para vender as coisas”, disse. Quando lhes foi dado o prazo, os sócios quiseram ver se a decisão era reversível. Agora o prazo está a aproximar-se e, mesmo com promoções, as pessoas “com a crise que está só levam o que precisam”.

Não sabemos se dá para ir para outro sítio, porque isto dava para manter. Mas para arranjar um espaço novo pedem-nos para cima de 2.000 euros [por mês]. Assim é difícil manter um negócio destes”, contou.

O espaço centenário já foi a Antiga Casa Alvarez. Em 1964, nascia ali a S. Pereira Leão pela mão de três sócios. O negócio, onde se faziam perfumes, aromas e essências, comemorou este ano meio século. É também há 50 anos que Fernanda Silva trabalha ali, juntamente com mais duas funcionárias que reúnem toda a sabedoria sobre os produtos que vendem.

Contactado pelo Observador, o proprietário disse não querer falar, uma vez que o assunto está a ser conduzido pelos advogados. Questionado sobre a possibilidade de a drogaria poder continuar no mesmo local, o proprietário do edifício disse apenas nunca ter chegado “a pensar nisso”, acrescentando que os sócios não tentaram continuar ali.



Petição para “uma cidade das pessoas”

No Portugal da crise, da nova lei das rendas e do ‘boom’ turístico, a história tem-se repetido. A charcutaria Nova Açoreana, com 120 anos de história, fechou em 2011. No número 116 da Rua da Prata nasceu no seu lugar um hotel. Os Armazéns Ramos também fecharam no ano passado. No seu lugar, mais um hotel. A Ourivesaria Aliança, na Rua Garrett, é agora uma loja da marca catalã Tous. “Estão a desmantelar e a descaracterizar a Baixa”, acusa Fernanda Silva.

Foi Miguel Honrado, enquanto presidente da EGEAC, que criou o Teatro das Compras. “Para chamar a atenção para estas lojas tradicionais”, disse, este sábado. Miguel Honrado esteve presente a título pessoal, para “defender o comércio tradicional, que é uma das características distintivas da Baixa lisboeta”, disse ao Observador. “Os hotéis são bem-vindos, mas tem de haver aqui um equilíbrio entre a memória da Baixa e o seu património, e as coisas novas que vão aparecendo“. O presidente da empresa municipal que gere a animação cultural lisboeta entende que “os tempos mudaram” e que a rentabilização “é importante”, mas defende que os projetos de investimento têm de se relacionar com os negócios locais mais característicos, que “devem ter direito à sua existência”.

Desde o primeiro ano que o Teatro das Compras trabalha com a drogaria S. Pereira Leão. O projeto, liderado pelo italiano Giacomo Scalisi, só faz sentido se restarem lojas tradicionais onde atuar. Na sua visão “de estrangeiro”, Lisboa é “uma cidade que não cuida de si própria”, disse.

“Fashion, gourmet, vintage. Tudo palavras estrangeiras, por acaso. Depois os turistas vêm visitar o quê? Não se podem fechar estas lojas para fazer lojas vintage. Isto é o verdadeiro vintage!”, disse Scalisi.

O Teatro das Compras lançou uma petição online “contra o encerramento da S.Drogaria Pereira & Leão, ou a sua transformação num pastiche vintage“. A defesa da Drogaria é um símbolo de um objetivo maior: evitar que Lisboa se torne uma cidade “desumanizada, onde a história e a vida das pessoas vale tão pouco face ao lucro do turismo massificado e da especulação imobiliária”. Admitem que a petição pode não conseguir mais do que divulgação, mas acreditam que o poder público – especialmente a Câmara Municipal de Lisboa – terá de tomar uma atitude se os protestos se fizerem ouvir.


“Recusamos uma Baixa de turistas e gente rica – com 96 hotéis mas sem história, sem o pequeno comércio local de qualidade, especifico, que sempre a caracterizou”, pode ler-se na petição.


Manifesto Para uma Cidade das Pessoas Contra o encerramento da Drogaria S.Pereira & Leão, ou a sua transformação num pastiche vintage
Para: Joana Craveiro, Giacomo Scalisi, Catarina Requeijo, João de Brito, Luís Godinho e o projeto Teatro das Compras
Manifesto Para uma Cidade das Pessoas
Contra o encerramento da Drogaria S.Pereira & Leão, ou a sua transformação num pastiche vintage

Na iminência do encerramento de mais uma loja centenária na Baixa de Lisboa, fruto da especulação imobiliária e da gula turística de construir mais um hotel e aumentando a renda para níveis não comportáveis pelos pequenos comerciantes;
Na iminência de um despedimento de três funcionárias, que são elas próprias uma memória viva da Baixa;
Na iminência de Lisboa deixar de ser uma cidade das pessoas para passar a ser uma cidade de lucro fácil à conta de terceiros que aqui vêm deixar o seu dinheiro – mas que, na verdade, não a habitam – a iminência de uma cidade desenraizada, alienada, sem comunidade residente que a habite diariamente e que com ela interaja construindo relações humanas de vizinhança e de proximidade;
Na iminência de tudo isto, vimos dizer aqui hoje que recusamos uma cidade assim – desumanizada, onde a história e a vida das pessoas vale tão pouco – face ao lucro do turismo massificado e da especulação imobiliária – em que as frias ordens de fecho e despedimento surgem sem aviso e sem compaixão, deixando os que as recebem em choque e numa sensação de paralisia e de impotência face aos grandes poderes.
Recusamos, ainda, que sejam estes grandes poderes a governar a cidade, expulsando assim os que nela trabalham há mais de 40 anos, e a fechar lugares com história, que fizeram da Baixa lisboeta aquilo que ela foi, que queremos que continue a ser: “Um píncaro, só comparável aos Himalaias!”
Recusamos uma Baixa de turistas e gente rica – com 96 hotéis mas sem história, sem o pequeno comércio local de qualidade, especifico, que sempre a caracterizou.
Recusamos que vandalizem assim as nossas memórias, o nosso património afectivo, e que, de forma irreversível, destruam um pouco de quem somos, levando por arrasto a vida das pessoas que aqui trabalham.
Recusamos e protestamos: A DROGARIA S.PEREIRA & LEÃO NÃO PODE FECHAR! Pois só aqui encontramos os segredos dos perfumes do patrão Leão; pois só aqui há o pó de arroz das nossas avós, os cremes das nossas mães; pois só aqui há quem nos explique como tudo isso se fazia, e nos aconselhe com um saber que é quase centenário.
A memória constitui-nos como pessoas, torna-nos humanos. Estamos aqui hoje a lutar pela memória da cidade.
A Drogaria Pereira Leão não precisa de ser transformada em loja vintage porque ela é o vintage, original, real! A Drogaria S. Pereira & Leão não é uma imitação de nada – é assim!
O projecto Teatro das Compras começou na Drogaria Pereira Leão, que é a sua loja-símbolo. Em seis anos de projecto, muitas das lojas onde foram feitos espectáculos desapareceram, consumidas pela voragem da crise, da especulação, do turismo, da falta de memória.
Vamos afirmar em conjunto, hoje outra vez, que não queremos que mais esta loja encerre, que não queremos o fim de mais este repositório de memórias da Baixa Lisboeta.


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