domingo, 14 de dezembro de 2014

O mundo de Ricardo Salgado já não existe, por MANUEL CARVALHO

“O dono disto tudo” passou a “responsável disto tudo” e agora, pelos vistos, quer ser a “vítima disto tudo”
PÚBLICO

O mundo de Ricardo Salgado já não existe
MANUEL CARVALHO / 14/12/2014 / PÚBLICO

Ao longo de mais de dez horas de inquérito na comissão parlamentar sobre o caso BES, Ricardo Salgado teve a proeza de desvendar muitas das misérias do Portugal recente sem ter dito nada de novo. Mais do que as palavras ou os subterfúgios, mais do que a opinião, a sua pose hierática e a jactância com que abordou a mais vil destruição de valor no país dos últimos anos dizem tudo - ou quase tudo - o que foi o Portugal europeu dos últimos 20 anos. Salgado habitou e reinou sobre esse mundo e, pelo que se viu na Assembleia da República, continua a acreditar nessa quimera onde a soberba, a inimputabilidade e a crença de que tudo se resolve através de uma bem oleada máquina tentacular que articula as elites políticas e económicas ainda existe. Para entender o seu papel, já não basta a compreensão. É preciso a psicanálise. “Vamos precisar de um longo relatório, um par de romances, meia dúzia de livros de não-ficção e, provavelmente acima de tudo, de uma ópera”, escreveu com humor e oportunidade Rui Tavares, no PÚBLICO

Ele, que foi o dono disto tudo, continua sentir-se capaz de ludibriar o juízo do comum dos mortais. Ele, que mandou em bancos de quatro continentes, tem direito a uma verdade exclusiva, mesmo que nenhum cidadão respeitável fosse capaz de a vislumbrar. A sua verdade dos factos é tão delirante que até parece vinda do espaço. Alguém consegue acreditar que um contabilista fosse capaz de falsificar contas no valor de centenas de milhões de euros sem o seu conhecimento? Numa organização financeira moderna, o simples desvio de um milhão de euros é impossível sem dolo, quanto mais de centenas de milhões. Alguém é capaz de aceitar que não houvesse uma intencionalidade perversa na triangulação das obrigações que agravaram o rombo do banco? Alguém no seu bom juízo acredita que Álvaro Sobrinho fosse capaz de derreter três mil milhões em empréstimos à elite angolana (ou, quem sabe, a ele próprio para comprar jornais em Portugal) sem que o dono do banco e disto tudo não suspeitasse, ao menos?

Ricardo Salgado ainda não percebeu que o seu mundo faustoso, onde tinha direito ao delírio e à impunidade, acabou. Como na história de Pedro e o Lobo, a sua palavra vale tanto como o banco mau. Faliu. Não deu conta que, para nosso bem, os fundamentos dessa cultura que elevava alguns acima da condição da gente normal estão a ser devastados pela crise e pela necessidade. Como dizia Jorge Coelho na Quadratura do Círculo da SIC, a maré baixou e deixou à vista quem usa e quem não usa fato-de-banho. Já não há favores que se possam pedir ao Governo nem a empresas que, como a Portugal Telecom, existiam como serventuários do interesse dos Espírito Santo. Já não há cumplicidades que se conservem à espera de favores futuros. Já não há quem venda a sua palavra ou a sua consciência porque deixou de haver dinheiro para a comprar. Já não há lugares para homens como Godinho de Matos, que teve o desplante de dizer que, durante seis anos, "entrava mudo e saia calado" das reuniões do conselho de administração do banco, "bem como todos os administradores”. A elite protegida pelo poder político e alimentada por uma corte de administradores que trocavam bajulação por chorudas senhas de presença está a desfazer-se. A velha ordem perdeu o domínio do país, notava há dias o Financial Times.

Sim, Salgado talvez suspeite que esse mundo desenhado nos tempos do condicionamento industrial e modernizado pelos anos do dinheiro fácil da Europa acabou, mas o seu infortúnio é não ser capaz de conceber nenhum outro onde possa existir. Resta exilar-se no seu passado. É essa impossibilidade de encarar a realidade que leva um homem que tudo dominou a dizer que nada fez nem nada sabia. A culpa pela destruição do BES é dos outros, do Governo ou do Banco de Portugal, porque foram os outros que mudaram, enquanto ele persiste em acreditar que as contas manipuladas ou a transformação de um banco no braço armado dos interesses da família eram apenas detalhes de um processo fácil de gerir com o silêncio cobarde de meia dúzia de compinchas e a venalidade da regulação e do poder político. Se na segunda-feira Salgado foi capaz de fixar milhares de portugueses horas a fio à frente das televisões é porque ele encarna os vilões patéticos das telenovelas. A megalomania do aristocrata que se agarra ao título mesmo após todo o seu mundo ter caído em ruinas sempre atraiu o imaginário popular.

Custa a acreditar que Salgado fosse capaz de acreditar que salvaria a sua reputação persistindo num estado de negação e em histórias mal contadas. O que podemos ter como certo é que se esforçou para representar esse papel. O seu tom de voz foi constante, a frieza com que declarou não saber que havia um buraco multimilionário nas contas da Espírito Santo International também. Ora, como se sabe, não se protegem reputações com histórias da Carochinha ou com fantasias que exasperam quem as ouve. A assunção de erros e o compromisso com a verdade são as únicas formas que existem de alguém que causou um dano imenso ao país poder conservar um mínimo de dignidade. Mas Salgado não vai por aí. Para ele, o combate na comissão parlamentar de inquérito serviu de ensaio para testar a sua versão dos factos na batalha judicial que se avizinha. Bem apela ao bom nome da família – só por uma vez atacou o primo José Maria Ricciardi -, mas sabe que vai combater só. Já não é o imperador da finança, tornou-se o seu pária.  

Restar-lhe-ia outra alternativa senão permanecer no mundo que criou e ajudou a criar nos interstícios deste Portugal desalmado? A frieza racional da sua pose mostra, como notou João Miguel Tavares no PÚBLICO, a escolha entre “dois caminhos possíveis para a sua defesa: ou admitir que era muito aldrabão, ou admitir que era incompetente. Compreensivelmente, optou pela incompetência”. Mas há também quem visse nessa pose a conservação de um estatuto que nem a falência do BES foi capaz de abalar. “Ninguém, nem sequer os poucos partidários que certamente ainda tem o consegue ver senão na figura de Golias”, observou João César das Neves, no Diário de Notícias. Na história conhecida não há nenhum David, mas é sabido que foi a soberba que derrotou Golias, como agora está a derrotar na opinião pública o que resta da reputação do banqueiro.


Ao longo da história, o cataclismo de grandes corporações financeiras ou escândalos de intriga, ambição desmedida e corrupção são prenúncios de regimes estiolados à espera de regeneração. O drama dos Espírito Santo tem esse dom de nos mostrar, se não o fim de um regime, ao menos o fim de uma era. Com a crise, o país talvez não consiga expurgar-se dos seus hábitos velhos e velhacos, como o indicia o caso dos vistos gold; mas tem ao menos a sorte de poder eliminar alguns dos tumores que, por metástases políticas e empresariais, o conduziu ao limiar da bancarrota financeira e ética. Saber que o país em que Ricardo Salgado continua a julgar que vive já não existe é, afinal, a melhor notícia de todo este caso degradante.  

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