quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A sonsice de Pedro Passos Coelho JOÃO MIGUEL TAVARES. Pedido de Passos à Procuradoria esbarra no levantamento do sigilo bancário


OPINIÃO
A sonsice de Pedro Passos Coelho
JOÃO MIGUEL TAVARES 25/09/2014 - PÚBLICO
O chuto para a Procuradoria é apenas um expediente espertalhão com o objectivo de adiar a admissão do óbvio: o primeiro-ministro fez asneira. E da grossa.

Não há qualquer vontade de apurar “a verdade” ou desejo de esclarecer a pátria no pedido do primeiro-ministro para a Procuradoria-Geral da República investigar o caso Tecnoforma. O Ministério Público tem mais que fazer e Passos Coelho sabe muito bem o que fez. Pode ter sido há 15, 20 ou 30 anos: ninguém se esquece de um ordenado que duplica o rendimento mensal. Simplesmente, Passos não quer, nem pode, admiti-lo – para ser coerente com o moralismo que apregoa, teria de se demitir no minuto seguinte. Donde, o chuto para a Procuradoria é apenas um expediente espertalhão com o objectivo de adiar a admissão do óbvio: o primeiro-ministro fez asneira. E da grossa.

Isto é simultaneamente ridículo e sintomático. Ridículo, porque os valores que estão em causa não justificariam a queda de um primeiro-ministro. Sintomático, porque o problema da Tecnoforma está longe de ser o dinheiro que pagava a Passos Coelho – a empresa é um retrato perfeito de como se desviam fundos europeus para actividades que podem até nem ser ilegais, mas que são inconcebíveis e imorais. Convém recordar aos mais esquecidos que a Tecnoforma era essa extraordinária empresa, impulsionada pelo romântico par Passos-Miguel Relvas, que se propunha, em troca de 1,2 milhões de euros, dar formação a 1063 pobres almas com um objectivo que parece saído do argumento de uma série cómica britânica: ensinar os mais de mil formandos a operar em nove aeródromos da Região Centro, dos quais só três estavam activos e empregavam, no total, cerca de 10 trabalhadores.

Foi assim que, durante anos e anos, foram estoiradas dezenas de milhões de euros de fundos comunitários que deveriam contribuir para o desenvolvimento do país. E claro: quem frequentava os corredores da Assembleia da República era um veículo privilegiado para canalizar os fundos para terrenos favoráveis. O Manuel sabia de um concurso para a formação de medidores de perímetros de beringelas e dizia ao Joaquim; o Joaquim sabia de um concurso para a formação de analistas em brilho de superfícies inox em restaurantes e dizia ao Asdrúbal; o Asdrúbal sabia de um concurso para formar os formadores disto tudo e dizia ao Manuel. A única variável neste processo era mesmo a dimensão da lata e a vocação dos senhores deputados e secretários de Estado para gerir negócios. Havia alguns, como Miguel Relvas, que tinham muita lata e muita vocação. Havia outros, como Passos Coelho, que provavelmente seriam um pouco mais modestos – mas que, ainda assim, aproveitavam uma migalha aqui e outra acolá, porque a vida é longa e o ordenado de deputado curto.


Só que, ao contrário de Relvas, que tem um sorriso do tamanho da sua lista telefónica e se assume como “facilitador de negócios”, Pedro Passos Coelho sempre se apoiou numa imagem de extrema modéstia e parcimónia. Ele é o homem de Massamá. Ele é o homem que passa férias em Manta Rota. Ele é o homem que pôs os ministros a viajar em turística. E esse homem, claro está, não pode conviver com uma acusação de cinco mil euros a caírem-lhe no bolso todos os meses sem que ele se recorde disso, ao mesmo tempo que invoca o estatuto de deputado em exclusividade para sacar 60 mil euros de subsídio de reintegração. É possível que Passos Coelho apenas tenha feito aquilo que todos fizeram durante os festivos anos 90. Só que aquilo que ele fez em 1999 não é aceitável em 2014. E ainda bem. A sonsice vai aguentá-lo – mas a sua reputação de governante impoluto morreu.

Pedido de Passos à Procuradoria esbarra no levantamento do sigilo bancário
PÚBLICO / 25-9-2014

O pedido do primeiroministro à ProcuradoriaGeral da República para que se averigúe se houve algum ilícito no recebimento de montantes não declarados e com origem na Tecnoforma deverá esbarrar no sigilo bancário. Uma vez que os eventuais crimes estarão prescritos — reportarão ao período entre 1997 e 1999 e o crime de fraude fiscal prescreve após dez anos —, o Ministério Público (MP) não terá legitimidade para fundamentar o pedido ao banco para que levante o segredo. Seria uma forma de obter a informação capaz de desfazer a dúvida sobre se Passos Coelho recebeu efectivamente algum vencimento pelo seu cargo de presidente do Centro Português para a Cooperação ligado à Tecnoforma naqueles anos.
Procuradores ouvidos pelo PÚBLICO garantem mesmo que se o pedido for feito e os dados acedidos, o magistrado que o subscrever poderá incorrer numa ilegalidade, porque está a querer apurar um crime que já prescreveu e com isso a lesar direitos. Em último caso, sublinham, poderá estar ele próprio a violar o segredo bancário.
Isto não impossibilita que a questão seja averiguada pela PGR, apesar de alguns juristas realçarem que não se pode investigar formalmente um crime que prescreveu. “É ridículo abrir um inquérito que já se sabe que será de imediato arquivado”, disse ao PÚBLICO o constitucionalista Manuel Costa Andrade.
Perante uma denúncia, a Procuradoria-Geral da República pode abrir um inquérito para verificar se o crime prescreveu efectivamente, arquivando-o de imediato. Esta tem sido a prática dos magistrados, ao que o PÚBLICO apurou junto de fontes judiciais.
Porém, neste caso até há já um inquérito em curso, o relativo à Tecnoforma no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa. Foi para lá que a procuradorageral da República, Joana Marques Vidal, remeteu, aliás, a denúncia anónima que visa o primeiro-ministro Passos Coelho relativamente ao que recebeu enquanto deputado e o que declarou.
O teor do pedido de Passos Coelho para que o Ministério Público averigúe a sua situação ainda não é conhecido, mas um procurador explicou ao PÚBLICO que as investigações não servem para excluir as responsabilidades de ninguém. A situação deixa dúvidas e merece as críticas e a oposição de alguns juristas.
“Um crime que prescreveu não pode ser investigado. O Ministério Público investiga para que haja acusação e punição. Isso é um acto nulo”, disse ao PÚBLICO o ex-procuradorgeral distrital de Coimbra Braga Temido.
E, neste ponto, todos estão de acordo, mesmo os procuradores que admitem a possibilidade de se abrir um inquérito. “Esses actos são nulos”, dizem.
Mas se no âmbito do inquérito que está a decorrer no DCIAP o Ministério Público tiver encontrado informação que esclareça o pedido de Passos Coelho, pode, afinal, vir a prestar informação pública, apesar do segredo de justiça do processo original.
Tal está previsto na lei, a pedido do visado e em caso de interesse público, como aconteceu recentemente quando a Procuradoria-Geral da República veio dizer que o exprimeiro-ministro José Sócrates não é suspeito no âmbito do processo Monte Branco. Noutra coisa concordam também os magistrados: Passos Coelho é o único com legitimidade para pedir as suas próprias informações bancárias que esclareçam cabalmente a suspeita.
Pedro Sales Dias e Sofia Rodrigues

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