Miguel Beleza "Pensei que Salgado estava acima de qualquer suspeita e desiludiu-me"

Miguel Beleza "Pensei que Salgado estava acima de qualquer suspeita e desiludiu-me"

Por Margarida Bon de Sousa publicado em 23 Ago 2014 –in (jornal) i online

O ex-governador do Banco de Portugal reconhece que é sempre possível esconder informação dos supervisores

Miguel Beleza confessa ter ficado bastante surpreendido com o que veio a público sobre Ricardo Salgado. Foi ele próprio quem convidou Manuel Ricardo Espírito Santo e António Champalimaud a regressarem a Portugal depois do 25 de Abril, no âmbito da reprivatização das empresas expropriadas durante a Revolução. Não acredita em sistemas de supervisão perfeitos, mas diz que mesmo assim o português está entre os melhores do mundo. Defende o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, e o presidente do Novo Banco, Vítor Bento, como tendo as capacidades necessárias para minimizarem o risco sistémico devido à queda do BES e do GES. Até ao fim deste mês está de férias, no Algarve, onde gosta de receber amigos e ler, sobretudo John le Carré.

Qual é o seu autor favorito?

John le Carré. Li praticamente a obra toda dele e estas férias vou provavelmente ler mais livros dele. Quando estou de férias levanto-me tarde, à hora que me apetece, depois como qualquer coisa, vou para a praia de bicicleta, durmo uma sesta, como umas sardinhas e durmo mais uma sesta. Gosto de descansar.

E de jantar e conviver com amigos?

Adoro. Desde que seja com amigos, gosto de jantar em casa ou em restaurantes. Sozinho é que gosto pouco. Normalmente recebo muita gente em casa.

Voltando a John le Carré, alguma vez teve uma experiência como as que ele descreve nos livros?

Quando Portugal aderiu ao mecanismo de taxas de câmbio eu era ministro das Finanças e o Tavares Moreira governador do Banco de Portugal e fizemos uma operação que parecia a do George Smiley. Houve um conselho de administração do Banco de Portugal e depois instalámo-nos num hotel em Vigo, numa espécie de Operação Ipanema, naquela que parecia mesmo uma das histórias dos livros de John le Carré. Fomos para um hotel em Vigo depois ligávamos para Lisboa e combinávamos tudo com o primeiro-ministro. Mas aí o mérito pertenceu ao António Borges e ao Tavares Moreira. Para combinarmos a taxa de entrada no mecanismo que antecedeu a moeda única, em 1992. O professor Braga de Macedo queria uma taxa mais baixa mas era impossível. Na altura Portugal tinha excedente comercial e por isso fomos obrigados a fixar uma taxa que acabou por se revelar mais tarde alta de mais.

O que pensa da situação do BES?

Para mim foi uma surpresa porque eu conheço o Ricardo Salgado, aliás fui eu que convidei, quando era ministro das Finanças, para regressarem a Portugal, por indicação do Proença de Carvalho e do meu chefe de gabinete, António Vaz, o Manuel Ricardo Espírito Santo e o António Champalimaud. Aliás o Manuel Ricardo morreu pouco depois. Na altura, o meu secretário de Estado que tratava das privatizações era o Elias da Costa. Quando era ministro das Finanças tinha quatro secretários de Estado, a Manuela Ferreira Leite, no Orçamento, o Carlos Tavares, que era o do Tesouro, e o José Oliveira Costa, escolhido por Cavaco Silva, que era então primeiro-ministro.

O BES foi uma surpresa em que sentido?

Eu tinha conversado com o Dr. Ricardo Salgado quando fui convidado para tomar conta de um banco em Angola, convite esse que acabei por não aceitar porque ele próprio me aconselhou a não o fazer. O capital era do Banco Espírito Santo e eu não achei uma boa ideia correr riscos. Tratava-se do Banco Angolano de Negócios e Comércio. Nessa altura, o Ricardo Salgado avisou-me e muito bem, que não tinham capital, que era ele quem emprestava o dinheiro.

Quer dizer que ficou surpreendido com o que já veio a público sobre Ricardo Salgado?

Pensei que ele era um banqueiro acima de qualquer suspeita e afinal fiquei desiludido.

Tem ideia do impacto que o fenómeno BES vai ter na economia?

Era um dos maiores bancos portugueses e tem ramificações em todo o lado, quer em Portugal quer no estrangeiro, portanto não vai ser uma crise fácil de ultrapassar. Mas eu tenho a maior das confianças no Vítor Bento, sou amigo dele, fomos colegas no Banco de Portugal e tenho a máxima confiança no Carlos Costa, que me ajudou imenso em Bruxelas quando eu era ministro das Finanças. Só tinha um defeito, escrevia muito bem mas textos enormes, e eu gosto de coisas pequenas e concisas.

Apesar dessa sua relação privilegiada com Carlos Costa não se pode dizer que a actuação do Banco de Portugal tenha sido a mais correcta. Tinha lá o dossiê do Pedro Queiroz Pereira há um ano e já havia muitos indícios de que as coisas não estavam bem...

Como sabe, estou afastado do Banco de Portugal há um bom par de anos e portanto aí não sou capaz de dizer grande coisa. Pior foi o BPN. O BES tem outra dimensão, mas no BPN os sinais eram mais evidentes, penso eu. É preciso estar lá dentro e é mesmo muito difícil, com a teia que é possível estabelecer através de dezenas de offshores, em que não é possível lá chegar.

Quem está dentro de onde? Do Banco de Portugal ou do BES?

Dos dois. Mas é muito difícil. Neste momento os movimentos de capitais são livres. Mas, mesmo que não fossem livres do ponto de vista legal, era impossível controlar. Basta um smartphone para transferir de um sítio para o outro a custo praticamente zero, com total fiabilidade e instantaneamente. É o que distingue a globalização de hoje em dia das anteriores. E portanto é extremamente difícil ter um conhecimento exacto do que se passa. E não foi só cá. Há problemas graves de supervisão em vários países. Portugal não se comprara desfavoravelmente com os países mais avançados nesta matéria.

Está a falar dos Estados Unidos e do Lehman Brothers?

Normalmente nos Estados Unidos a justiça é mais eficaz e mais célere. Em Portugal sabemos o que acontece. Mas também há problemas noutros países. No Lehman Brothers e não só.

Isso significa que os mecanismos de supervisão precisam de ser reforçados?

O mercado anda sempre à frente do corredor. É sempre possível não fornecer toda a informação.

Ficou surpreendido com a decisão tomada pelo governador do Banco de Portugal relativamente à separação do Banco Novo e do banco mau?

Penso que foi uma boa decisão que tenha havido uma separação em dois do banco.

Acha que a CMVM, o Banco de Portugal e o governo deram suficiente informação aos accionistas no último aumento de capital?

Nessas situações, nunca é possível fornecer uma informação completa, porque há sempre qualquer coisa que é possível esconder nos sistemas de supervisão, mesmo os mais avançados do mundo. Veja o caso da Suíça, dos Estados Unidos, e mesmo os problemas todos que estão a existir na Alemanha e dos quais ninguém fala.

Existe ou não um risco sistémico nesta situação do BES?

O Montepio Geral é uma instituição sólida, mas é evidente que um banco com a dimensão do BES implica sempre um certo risco sistémico. Mas a supervisão portuguesa, como já disse, não é inferior à dos países mais avançados e com a união bancária, uma coisa que defendo há vários anos, as coisas melhorarão com certeza.

Miguel Cadilhe disse esta semana que a crise do BES é uma crise de regime e de confiança nas instituições. Partilha dessa posição?

A situação financeira de bancos como o Espírito Santo é sempre extremamente delicada. Mas prefiro não comentar porque não li a entrevista.

Considera que a decisão do Banco de Portugal é inconstitucional no que diz respeito ao confisco das contas de pessoas da família Espírito Santo? Teria feito o mesmo enquanto governador do Banco de Portugal?

Não sou jurista e por essa razão a minha opinião vale o que vale. O Banco de Portugal tem poderes para isso embora, em meu entender, essa decisão devesse passar pelos tribunais.

E o facto de a separação dos activos entre o bad bank e o novo banco ter sido feita em 24 horas?

Na minha opinião é suficiente. Lembro--me muito bem da actuação do ex-governador do Banco de Espanha Luis Angel Rojo no caso do Banesto. A situação foi resolvida em dois ou três dias.

Mas casos como o do BES podem levar os depositantes a deixar de acreditar nas instituições financeiras...

Não acredito. Existe sempre o sistema de garantia de depósitos, embora às vezes vezes demore, o que pode causar problemas graves. Olhe por exemplo para o caso da Caixa Funchalense e outros. Agora é preciso ter consciência que não existe nenhum sistema à prova de bala.

Acredita que o Novo Banco consiga um aumento de capital de 4,9 mil milhões de euros? Ou vão acabar por ser os contribuintes a pagar, como no caso do BPN?

O BES tem uma infra-estrutura de pessoas de balcões e de rede internacional... Eu não sou íntimo do Vítor Bento, mas conheço-o bem, é uma pessoa com sentido de humor, fomos colegas no Banco de Portugal e é uma pessoa íntegra e inteligente. Agora ninguém sabe se vai conseguir arranjar investidores privados que comprem o Novo Banco. Mas se não for ele, não vejo quem possa fazer melhor. Ou melhor, há pessoas que podiam pegar no BES, como por exemplo o Tavares Moreira e mais algumas, mas o Vítor Bento é uma pessoa em quem eu deposito a maior confiança.

Como justifica que só tenham constituído o Ricardo Salgado arguido depois de ele ter saído da administração do banco?

Isso faz-me lembrar o caso do Vale e Azevedo, que só foi constituído arguido depois de ter saído de presidente do Benfica. Não faço ideia. Se calhar o impacto negativo teria sido muito maior se ainda fosse presidente do banco. Era capaz de causar mais desconfiança e, como sabe, os bancos são extremamente delicados, é uma questão de confiança e é preciso o maior dos cuidados.

Tem dinheiro no BES?

Não. E que me lembre nunca tive.

Ainda pode haver uma corrida aos depósitos?

Acho que não, embora ninguém possa ter a certeza absoluta de nada. Mas confio no Carlos Costa e no Vítor Bento. Tudo depende da confiança que conseguirem passar ao mercado. Recorda-se de um caso que houve em Macau com o BCP? Foi um rumor e um grande problema mas também se resolveu porque se recuperou a confiança num dia. Mas com os bancos tudo é possível.

Como é que os testes de stresse não detectam situações como a do BES?

Já fiz testes de stresss. Mas estes nunca são exactamente a mesma coisa que a vida real. São uma simulação, pelo que são eminentemente subjectivos. E nunca é possível reproduzir exactamente o que vai na cabeça das pessoas.

Com Basileia 3 foi criada na opinião pública a ideia que os testes de stress eram uma garantia para os depositantes. Mas afinal parece que não servem para nada.

Conheço bem a supervisão nos Estados Unidos, como sabe doutorei-me lá, fui colega do Mario Draghi, do Lucas Papademos, há uma máfia do MIT aí pelos bancos centrais, no Brasil, mas há muita coisa que escapa aos sistemas de supervisão.

O Montepio Geral pode ser um novo BES?

Acho extremamente improvável. O Silva Lopes deixou a instituição num estado fabuloso. Eu estaria à vontade. Tenho lá uma conta.

Como viu a demissão dele da PT SGPS?

Provavelmente fez bem. Mas não tenho mais informação.

Como é que a sua vida para além do seu lado mais conhecido?

Sou sócio do Futebol Clube do Porto há muitos anos, ainda sou primo afastado do Pinto da Costa. Gosto de muito de Eça de Queirós, e ainda há pouco tempo fiz uma conferência no Grémio Literário em que disse que ele não sabia acabar livros porque morrem todos no fim, gosto do Fernando Pessoa... E sou um físico falhado. Eu gosto é de matemática, estatística, da teoria da relatividade.

Então porque é que foi para economia?

Tenho três irmãs juristas, a Leonor, que é presidente da Fundação Champalimaud, a minha irmã Teresa, que é directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, e a Maria dos Prazeres, que pertence ao Supremo Tribunal de Justiça. E a minha mãe, que era uma pessoa espectacular, perguntava-me: "Miguel, pode um homem casar com a irmã da sua viúva?" E eu respondi-lhe "Ó mãe, não tem muito interesse porque o homem está morto." E a minha mãe respondeu-me se não interessa, não podes ir para direito, tens de ir para economia.

Mas não se saiu mal na sua área...

Gostei muito de ser governador, de ser ministro um bocadinho menos, porque era muita política e pouca técnica. Mas como lhe disse tive um grande chefe de gabinete e bons secretários de Estado. O Oliveira Costa, que depois se veio a verificar que era um homem pouco cuidadoso, foi um excelente secretário de Estado e muitíssimo trabalhador. Foi uma pena o caso do BPN.

Qual é a sua relação com os partidos políticos?

Não tenho muito interesse. Mas dou- -me muito bem com o António Guterres, foi a primeira pessoa que me ligou a dar os parabéns quando nasceu a minha filha. Tive uns debates com o Francisco Louçã na TSF, de que gostei muito. Tenho o maior respeito pelo Jorge Sampaio, pelo Mário Soares, pelo general Eanes e por Cavaco Silva, evidentemente, com quem trabalhei. Sou amigo pessoal do John Major, que me costumava dizer que não percebia determinadas coisas que eu defendia e para lhas explicar para poder votar contra quando estávamos a trabalhar no euro. E do George Bush pai. Tirei uma fotografia com a mulher.

Acompanha a situação da Ucrânia e da Rússia?

Estou bastante apreensivo, porque estou a ver os resultados na economia europeia, e com a mortandade possível que venha a derivar daquele conflito. Na Rússia nunca estive. E o problema na Faixa de Gaza não tem solução. Estive no velório do Yitzhak Rabin quando ele foi assassinado e percebi que é praticamente impossível haver uma saída para a crise.

As sanções à Rússia podem provocar um arrefecimento maior na economia europeia?

Nas circunstâncias actuais, sim. É evidente que não ajudam. Mas são indispensáveis. Os russos não podem entrar na Ucrânia como se fosse uma política de terra queimada. Agora não acredito que vá para além disso. As relações comerciais entre a Europa e a Rússia são de tal maneira estreitas que é altamente improvável qualquer intervenção militar. Quando as relações económicas são muito estreitas, não há interesse maior em haver guerra. Ninguém quer fazer guerra a quem nos dá o ganha-pão.

Acredita que a nova Comissão Europeia possa vir a seguir uma política económica mais amiga do crescimento?

Sou muito amigo do Jean-Claude Juncker. Ele fumava muito na altura em que éramos colegas. O Paul Krugman era meu companheiro no MIT também. Juncker é muito bom, é um grande amigo de Portugal, mas na verdade o que é que ele pode alterar?

A inflação na zona euro voltou a cair em Julho, para 0,4%. Isso não o preocupa, entrarmos numa espiral deflacionista?

Aí é preciso ter cuidado. O Milton Freedman tem razão. O mundo está inundado de liquidez, e se não tivermos cuidado daqui a dois a três anos a inflação sobe outra vez. Não acredito que a deflação se instale na Europa. Nós não nos podemos livrar do dinheiro. Está por aí. Se fosse eu, já tinha subido um pouco as taxas de juro.

Mas isso não faria arrefecer ainda mais a economia?

Não me parece. Penso que é mais perigosa uma inflação elevada num futuro próximo que a deflação. Mas isso ninguém sabe. O Samuelsen, de quem fui aluno, dizia sempre para nós, economistas, nunca fazermos previsões. Mas que, se não tivéssemos outro remédio, para fazermos muitas, porque algumas teriam de estar certas por razões estatísticas. E como as pessoas têm memória curta, nunca se lembram das últimas.

A própria Alemanha começa a ser afectada pela austeridade aplicada a todos os países ao mesmo tempo. Acha que isso pode inflectir a forma de conduzir as coisas da senhora Merkel?

Eu sou um admirador da chanceler alemã mas neste momento não há muito mais a fazer. A Alemanha fez um enorme esforço de ajustamento. Quanto a mim, fizeram mal em estabelecer um salário mínimo. Pode vir a ser uma máquina geradora de desemprego, porque não vale a pena criar um sistema para pagar o que as pessoas não valem. Não vale a pena fixar salários mínimos altos. E são as mulheres que entram na força de trabalho e os homens quem perde. O salário mínimo acaba por prejudicar aqueles que queremos proteger mais.

Em Portugal também não devia haver salário mínimo?

Muito provavelmente. Isso é uma coisa entre os sindicatos e as empresas. Mas a fixá-lo, então que se faça por um período prolongado, para dar previsibilidade. A incerteza é o que há de pior para o crescimento e o investimento.

Como vê a guerra entre António Costa e António José Seguro no Partido Socialista?

Para o PSD, o António Costa é um adversário muito mais difícil, penso eu. Sou membro do PSD desde 1974. O António Costa é muito mais eficiente que o António José Seguro no combate à coligação que está agora no governo. Mas ainda é cedo para prever o que vai acontecer.

É católico? Acredita na reencarnação?

Não sei. Fui educado como católico, agora depende. Tenho muita dificuldade em dizer-lhe se tenho fé ou não. Umas vezes tenho, outras não. Confessei-me a última vez ao padre João Seabra, há alguns anos. Acredito no livre arbítrio, que a vontade das pessoas, de um homem, no momento exacto, faz uma diferença imensa. Os ventos da história interessam, mas uma só pessoa pode fazer uma grande diferença para o bem e para o mal.

Em que é que o catolicismo o marcou?

Deixou-me valores importantes. E quando vou à missa comungo. É uma forma de sentir que faço parte. Agora vou menos que antes. Já fui todos os domingos.

Como vê o seu futuro próximo?

Espero continuar a dar umas aulas. Vou ter um neto em breve, quero escrever a minha biografia e dar umas conferências. Nasci no dia 28 de Abril de 1950, no mesmo dia do ano que Salazar, Saddam Hussein e Penélope Cruz.