segunda-feira, 19 de maio de 2014

Como se explica a longevidade das lojas centenárias de Lisboa?



Sobre este mesmo tema VER:
TÍTULO: As lojas tradicionais da Baixa : desafios presentes e futuros / António Sérgio Rosa de Carvalho
IN: Baixa Pombalina : bases para uma intervenção de salvaguarda / coord. João Mascarenhas Mateus. – Lisboa : Câmara
Municipal. Pelouro do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação Urbana, 2005. – p. 93-100 : il.


Como se explica a longevidade das lojas centenárias de Lisboa?
José António Rousseau tentou identificar as razões da resiliência de 47 negócios e concluiu que a localização, a especialização e a qualidade são aquilo que os proprietários consideram mais importante
Inês Boaventura / 19-5-2014 / PÚBLICO

Quais são os segredos que explicam que mais de meia centena de lojas centenárias de Lisboa tenham conseguido sobreviver “aos Adamastores das pressões e crises económicas” e chegar aos dias de hoje “saudáveis, lucrativas e com potencial para o futuro”? José António Rousseau desenvolveu uma tese de mestrado sobre o assunto e chegou a duas conclusões, que o surpreenderam: a localização foi a explicação mais referida pelos comerciantes e a “transição familiar e geracional” não é considerada tão relevante como se poderia pensar.
Para este trabalho, intitulado Resiliência do retalho independente centenário de Lisboa, este professor universitário e antigo director-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição olhou para 47 lojas retalhistas, “de natureza independente, fundadas há mais de 100 anos e ainda abertas ao público”. Essa amostra, que deixou de fora as empresas da área da restauração e aquelas que evoluíram para cadeias de retalho (como a Bertrand e a Casa Batalha), “representa e coincide praticamente com o total do universo a estudar”.
“Tentar identificar e compreender as razões da longevidade” desses negócios, alguns deles nascidos ainda no século XVIII, foi o objectivo de Rousseau, que entrevistou representantes das 47 lojas. Entre elas, há “diversidade” do ramo de actividade, mas também “um forte elemento de homogeneidade decorrente da localização”, já que a esmagadora maioria se situa na Baixa/Chiado.
A localização foi precisamente “o factor mais referido” pelos comerciantes daqueles negócios centenários para explicar a longevidade. “É uma conclusão que me surpreende”, diz o autor desta tese, acrescentando que os entrevistados lhe manifestaram a convicção de que as lojas “provavelmente não teriam conseguido sobreviver” se funcionassem noutro sítio de Lisboa. Também a “natureza ultra-especializada” e a “qualidade do serviço e do atendimento” surgiram como “fortes factores potenciadores da resiliência do retalho independente”.
Outra surpresa foi o facto de a “transição familiar intergerações” não ser vista pelos comerciantes como um dos aspectos mais relevantes para a sobrevivência. “Esperava encontrar mais casos em que essa transição fosse a explicação mais importante para a resiliência”, diz, sublinhando que na maioria dos casos analisados o negócio permanece nas mãos da mesma família há mais de um século.
Chapéus há muitos, mas...
Um dos muitos exemplos é o da Chapelaria Azevedo, no Rossio, criada em 1886, quando Manuel Azevedo Rua, “que na altura era produtor de Vinho do Porto, viu as suas vinhas serem devastadas pela filoxera e procurou encontrar outro meio de subsistência”. Hoje o rosto da loja é o trineto do fundador, que acredita que o facto de o negócio “não ter saído” da família “é um dos segredos do sucesso”.
Como factor explicativo da sobrevivência da chapelaria, Pedro Fonseca destaca ainda a qualidade: “Os produtos são bons. É tudo o mais tradicional possível”, diz. Também importante é o facto de não haver muitas lojas especializadas em chapéus. “Se calhar não temos uma concorrência muito directa e também por isso corre bem”. Com os móveis “originais, da altura de fundação da casa” e quase 130 anos de história, a Chapelaria Azevedo (que na verdade ocupa não uma mas sim duas lojas na Praça D. Pedro IV) consta de roteiros turísticos e é ponto de passagem para muitos turistas que visitam Lisboa. Segundo Pedro Fonseca, no Verão são eles os principais clientes.
Já no Inverno são os portugueses quem leva para casa mais chapéus, sendo possível encontrar entre os compradores muitos cujos avós também eram frequentadores da chapelaria. “Não é só a loja que passa de geração em geração, é também a clientela”, conclui o empresário, de 31 anos.
Também nas mãos da família que a fundou continua a Primeira Loja das Bandeiras, na Rua dos Correeiros. José António Rousseau conta que o negócio, de confecção e venda de bandeiras, foi criado pelo alfaiate António Cardoso em 1885. Na altura chamava-se Casa das Bandeiras, mas acabou por adoptar a sua designação actual “para se diferenciar e vincar o seu pioneirismo uma vez que, não tendo registado o nome, surgiu, entretanto, outro concorrente que adoptou a mesma designação [a original]”.
Neste caso concreto, como também no do Hospital das Bonecas (fundado em 1830, na Praça da Figueira), o consultor acredita que a “ultra-especialização é uma razão muito importante” para a resiliência do negócio. “Não há igual”, constata José António Rousseau.
É também essa a convicção de Margarida Silva, gerente da Primeira Loja das Bandeiras e esposa de um familiar do fundador. “Cada vez menos haverá este tipo de trabalho mais artesanal”, diz, destacando como outro factor diferenciador “a qualidade dos trabalhos apresentados”. Quanto ao futuro, e a quantos mais anos estará esta loja centenária de portas abertas, a co-proprietária diz que “só Deus sabe”.
José António Rousseau afirma que as 47 lojas que analisou neste seu trabalho estão, “de um modo geral”, “de boa saúde, embora não isentas de dificuldades”. “Acredito que muitas vão continuar por muitos e bons anos”, conclui.


São poucos os estabelecimentos de venda de produtos alimentares entre as lojas centenárias
Entre as lojas de retalho independente mais antigas de Lisboa há pelo menos dez farmácias, seis lojas de moda/desporto e quatro retrosarias. Os 47 negócios analisados por José António Rousseau na sua dissertação de mestrado, e que o próprio sublinha corresponderem praticamente à totalidade do universo em análise, incluem ainda quatro estabelecimentos de alimentação e de bebidas, dois de jogo e lotarias, dois oculistas e duas lojas de malas, peles e marroquinaria.
O consultor em distribuição, que pretende agora aprofundar este assunto numa tese de doutoramento, reconhece que não esperava encontrar tantas lojas centenárias em Lisboa. “Surpreendeu-me, pensei que fossem menos”, diz.
Quanto aos ramos de actividade, José António Rousseau destaca a existência de ópticas (a Rodrigues Oculista, que se apresenta como “a óptica mais antiga de Portugal”, e a Gil Oculista) entre os negócios com mais anos de vida, que foi para si outra surpresa. E também o facto de haver apenas três lojas alimentares, em grande parte suportadas por turistas.

Quanto às farmácias (entre as quais a Azevedos, fundada em 1775, e a Silva Carvalho, a Barral e a Andrade, todas da década de 30 do século XIX) o autor da tese acredita que uma das principais explicações para a sua longevidade pode estar no “proteccionismo legal”, que “durante muitas décadas” impunha limitações à abertura de novos estabelecimentos deste sector de actividade.

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