domingo, 27 de abril de 2014

O 25 de Abril entre as trincheiras


“Bem se sabe que muitas das declarações dos capitães têm derivado nos últimos anos para um radicalismo infantil”

OPINIÃO
O 25 de Abril entre as trincheiras
MANUEL CARVALHO 27/04/2014 – PÚBLICO

A soberba parlamentar e a petulância dos capitães levaram-nos a escolher um dos lados da barricada.

1 – Na cerimónia de comemoração dos 40 anos do 25 de Abril o Presidente da República desafiou os partidos a desistirem da superficialidade e a empenharem-se na procura de compromissos. Quem seguia em directo as suas palavras na televisão podia notar que esses apelos se resumiam a palavras vãs.

A pouca distância, no Largo do Carmo, os militares de Abril mandavam o compromisso para a estratosfera e entrincheiravam-se numa guerrilha de palavras apontadas à Assembleia e ao próprio Presidente. Compromisso político em Portugal? Quando o Parlamento não consegue entender-se com os capitães que fizeram a revolução para uma comemoração conjunta, quando a invocação de uma data histórica que cala fundo na maioria esmagadora dos portugueses se transforma num símbolo de desunião, que esperança há para o compromisso? 

Para a posteridade fica o registo: não houve um 25 de Abril, houve dois. O 25 de Abril do parlamentarismo e da democracia representativa e o 25 de Abril do basismo e da democracia popular. O 25 de Abril da democracia instituída e o 25 de Abril que sonha no regresso do PREC e do golpismo. Se o país não estivesse a ser corroído pelo radicalismo da esquerda que brada nas ruas e o radicalismo da direita que orbita em torno de São Bento, seria fácil congregar todas as divergências e transportá-las para a casa onde a democracia articula tensões e promove consensos: a Assembleia da República. Mas uma estratégia cega e estúpida dos deputados e da presidência da Assembleia combinada com a arrogância obstinada dos militares deu no que deu.

Bem se sabe que muitas das declarações dos capitães têm derivado nos últimos anos para um radicalismo infantil. Ao defenderem a necessidade de um novo 25 de Abril, o que eles conseguem é apenas desvalorizar a grandeza do seu legado naquele dia “inicial inteiro e limpo”. Há uma grande diferença entre o derrube de um regime senil, pacóvio, injusto, ditatorial e cerceador do mais básico dos direitos – o da liberdade de expressão e de escolha –, e uma democracia, por mais imperfeita que seja. Se há 40 anos para nos libertar da agonia de um regime arcaico e brutal foi necessária a coragem de militares, hoje para afastar um governo incompetente, mentiroso ou iliberal basta-nos accionar a protesto legítimo, os mecanismos constitucionais ou esperar pelo momento do voto.

A maioria esmagadora dos portugueses percebe a diferença, mas percebe também que uma democracia de raio de acção limitado é em si mesmo uma democracia limitada. Um parlamento onde não cabe o dissídio dos capitães que fizeram Abril não é um parlamento. Será quando muito uma câmara de eco. Os militares podiam não ter direito pelo regimento da assembleia a ter a palavra, mas os deputados tinham o dever de lha dar. Tinha de haver um entendimento. Não pode haver razão alguma para que os capitães de Abril não participassem na cerimónia dos 40 anos do 25 de Abril com o papel que merecem: o de autores e actores primordiais. Se não fosse por uma questão de princípio (que o era, acima de tudo) que fosse por conveniência táctica.

A soberba parlamentar e a petulância dos capitães levaram-nos a escolher um dos lados da barricada. Quem mais perdeu foi o parlamento, que surgiu aos olhos de muitos como o certificado da visão populista que coloca os deputados na primeira linha dos favorecidos do regime. Não deixa de causar perplexidade e repulsa a forma como o Bloco de Esquerda se apercebeu desse perigo e como tentou capitalizar a simpatia dos dois lados da cortina de ferro que se abriu entre o Parlamento e o Carmo: a sua liderança bicéfala repartiu-se entre os dois lados do conflito para poder ficar bem com Deus e com o Diabo ou, se preferirem, bem com a democracia popular e a democracia burguesa. 

Bem pode por isso o presidente apelar pela enésima vez ao compromisso político que, por este caminho, o país continuará a caminhar para a crispação. A democracia tem de ser regada, diz Passos Coelho, e o que esta semana se fez no Carmo e na Assembleia foi uma agressão à sua vitalidade. Quando uma parte do país ouve o Presidente a apelar à conciliação e outra escuta Vasco Lourenço a admitir o risco da violência se o Governo não fizer o que ele diz, o que sobra não é o exercício do pluralismo: é a incapacidade de o país se unir até em torno de uma data cujo simbolismo a maioria dos cidadãos tem gosto em partilhar.

2 – Na natural mania de avaliação que as efemérides sempre trazem à actualidade, poucos ficaram a salvo. Na avaliação dos 40 anos de Abril, os políticos incapazes e mentirosos, quando não corruptos, e os empresários inescrupulosos na sua ganância estiveram na primeira linha de fogo. Compreende-se. Um povo “que nem se governa nem se deixa governar” tem dificuldade em olhar-se ao espelho e medir a sua própria culpabilidade. É sempre mais fácil endossar a responsabilidade para cima.

É verdade que na medida de cada uma das nossas vidas, poucos serão culpados. A geração que nasceu logo antes do 25 de Abril ou imediatamente depois procurou apenas ter um emprego decente, uma família, dinheiro para casa e para férias, um carro e um telemóvel de topo. Mas há um limite nesta presunção. É impossível resumir um país a uma colecção de biografias. Se, um a um, os portugueses se podem isentar de responsabilidades próprias na parte de Abril que correu mal, o seu alheamento das causas colectivas compromete esta geração.

Se a democracia exigia do país cidadania, militância e participação, o que a maioria dos portugueses lhe deu foi abstenção, indiferença e tantas vezes menosprezo. O país que não vota, que não lê jornais, que não participa nos assuntos da polis é responsável pelo império do carreirismo nos partidos, pela galáxia de interesses que devora o Estado ou pela construção de uma sociedade com índices de desigualdade vergonhosos. O país que veio após as ruas de Abril aburguesou-se e, com jactância e irresponsabilidade, sentou-se no sofá a vituperar os políticos corruptos e os interesses instalados. Tornou-se um treinador de bancada, género que hoje se revela em todo o seu esplendor nos fóruns das rádios ou no discurso demagógico do “taxismo-leninismo”.


Nenhum país avança enquanto soma de indivíduos acomodados e diletantemente entretidos a dizer mal de quem os governa. A bulimia política, o desenrasque-se quem puder, o desinteresse pela cidadania activa e exigente são sempre o caldo de cultura onde germinam países falhados. O que correu mal no 25 de Abril não se explica apenas pela suposta imbecilidade ou pelo devorismo de uma elite política. Se elas existiram foi porque os portugueses as instigaram, elegeram e toleraram.

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