domingo, 16 de fevereiro de 2014

“A punição nunca se aplicou a Portugal” / entrevista exclusiva / PÚBLICO. Vítor Gaspar e a sua circunstância.


“A punição nunca se aplicou a Portugal”
Em entrevista exclusiva ao PÚBLICO, o antigo ministro das Finanças diz ter sido um negociador bem-sucedido e considera que “as dimensões humanas e sociais do programa de ajustamento foram sempre tidas em conta”
Teresa de Sousa / 17 fev 2014 / Público

Sete meses depois de ter abandonado o Governo, Vítor Gaspar aceita tornar pública a sua visão da crise em Portugal e na Europa. No livro de Maria João Avillez agora publicado, e que é lançado esta terça-feira, no Centro Cultural de Belém, não há fase da sua vida intelectual e política que fique de fora, permitindo um conhecimento mais profundo do homem que teve nas mãos durante dois anos o duro programa de austeridade que tivemos que cumprir. A Europa e o programa de ajustamento do país foram os temas centrais desta entrevista, que não podia ser sobre tudo. Mas também aí não há a mais ligeira brecha no seu pensamento.
Sugeriu que começássemos pela citação, que faz no livro, do grande historiador oitocentista
Oliveira Martins e que, no seu entender, define ainda hoje o nosso desafio enquanto país. Ele refere que temos de acumular recursos para sermos um país autónomo. Por que é que vai buscar esta ideia para compreender a crise que estamos a atravessar?
A ideia não é entender a crise, mas entender o ponto de vista português face à crise. O que Oliveira Martins diz, num curto ensaio que acho absolutamente brilhante, é que Portugal está a enfrentar pela terceira vez em 250 anos uma questão existencial. Nas palavras dele, e estou a parafrasear, Portugal enfrentava a questão de saber se tem recursos suficientes para viver como país autónomo dentro das suas fronteiras continentais europeias. Essa questão existencial volta a colocar-se agora, de uma forma ligeiramente diferente. A crise da qual Oliveira Martins falava era a crise de 1892. A crise que enfrentamos agora é a primeira crise financeira da área do euro, que se manifestou, ela própria, dentro da crise financeira global. Qual é a questão que se coloca a Portugal neste contexto? É saber se temos a vontade política, a capacidade social e cultural para nos afirmarmos como Estado autónomo e desenvolvido numa economia global muito concorrencial, e como membro pleno na área do euro e da União Europeia (UE). É uma questão existencial muito semelhante à que foi colocada por Joaquim Pedro Oliveira Martins.
A Europa mudou. Há hoje um país que volta a ser central e que goza de uma espécie de “unipolaridade” europeia. É em face desta Europa que está a emergir que nos temos de situar. Como ministro das Finanças, aceitou a visão alemã desta crise. Porquê?
Vários Estados-membros não aproveitaram a participação na área do euro para adaptarem a forma de funcionamento das suas economias às exigências dessa participação. Isto é, vários Estados-membros não conseguiram executar reformas estruturais suficientemente profundas para a exigência de pertencer ao euro. Mais: em alguns deles esta debilidade foi agravada pela existência de desequilíbrios que têm a ver com excesso de endividamento: nas famílias, nas empresas e no próprio sector público. No funcionamento da Europa, existe, na minha leitura, um ponto politicamente fundamental, que é o primado da dimensão nacional da política. Esse princípio significa, basicamente, que cada Estado-membro da área do euro tem de ser responsável pelas consequências das políticas que segue. Por isso, o Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação (“Tratado Orçamental”) e as regras de disciplina orçamental que estão nos chamados Six-Pack e TwoPack [um conjunto de leis que passam a determinar os equilíbrios macroeconómicos da zona euro] são tão importantes. Sem um princípio de responsabilização efectiva pela sustentabilidade das finanças públicas em cada Estado-membro, não é possível sustentar a área do euro. Do lado europeu, verificou-se também que as regras fundamentais que estavam acordadas no Tratado de Maastricht e no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) não foram cumpridas.
Pela Alemanha e pela França.
Logo em 2003, a Alemanha e a França estiveram no centro desse episódio e verificou-se também que a construção institucional da área do euro não estava desenhada de forma a garantir a sua robustez em condições de crise. Daí a necessidade de se avançar para a união bancária. Tenho defendido que é preciso ir ainda mais longe e construir uma verdadeira união financeira.
Um diplomata alemão, citado pela Der Spiegel, punha as coisas
assim: a Alemanha não pode desperdiçar esta crise para reformular a união monetária à sua imagem e semelhança. São eles que o admitem e que estão em condições de o impor. Ora, as coisas são mais complicadas do que a questão financeira. Têm uma dimensão social, económica, política.
Julgo que o que acaba de dizer sobre a Alemanha está errado. Em primeiro lugar, a ideia de encarar uma crise como oportunidade é uma ideia generalizada. O primeiro chefe de Gabinete de Obama, Rahm Emanuel, tem uma frase muito conhecida: “Não podemos permitir que uma boa crise seja desperdiçada.” É uma frase óptima. Muitas vezes, em Portugal, se falou também da necessidade de resolver alguns problemas estruturais profundos da economia portuguesa, que têm persistido durante décadas, precisamente num momento de crise. Porque, naturalmente, as mudanças mais profundas são motivadas por crises. Além disso, a ideia de que a crise é muito mais do que financeira e que a construção europeia é fundamentalmente um projecto político, é uma percepção muito forte na Alemanha. Quando, na década de 80, comecei a participar em negociações europeias, um dos países em que o debate político sobre a integração europeia era mais forte era, justamente, a Alemanha.
Ainda agora é.
A posição mais comum na Alemanha era que à unificação monetária tinha de corresponder uma unificação política. A disponibilidade para avançar para soluções mais profundas em termos de integração política tem vindo mais da Alemanha do que de outros países. De entre algumas coisas que disse e que me pareceram menos correctas, parece-me particularmente datada a ideia implícita de que a dimensão financeira da crise seria destacada pela Alemanha e que outros teriam uma visão mais ampla.
Talvez não me tenha feito entender. É verdade que, em Maastricht, Helmut Kohl queria ia muito mais longe em termos de união política e François Mitterrand não quis. O que lhe queria dizer é que esta crise veio alterar o equilíbrio de poder interno da União Europeia, dando à Alemanha um papel que ela, até agora, nunca tinha tido. Estou a apresentar um facto.
Julgo que está fazer muito mais do que isso. Uma das perspectivas que aprendi com John Maynard Keynes é que, num processo de ajustamento internacional, há uma profunda assimetria entre o que podem fazer os países credores e o que podem fazer os devedores. Quando olhamos para a história da integração monetária europeia, temos essa assimetria entre países deficitários e superavitários logo no mecanismo cambial do Sistema Monetário Europeu (SME) e voltamos a ter agora, com a união monetária. Ora, durante a década de 80, o tipo de argumento que se está a invocar agora sobre a hegemonia alemã e a assimetria do processo de ajustamento era invocado precisamente a respeito do funcionamento do mecanismo cambial. Também nesse mecanismo, a âncora do sistema era o marco, a credibilidade era a do Bundesbank e eram os países com moeda mais fraca que suportavam o fardo do ajustamento.
Esteve muitos anos fora, trabalhando em instituições europeias fundamentais para a nossa vida. Voltou porque pensava que essa capacidade de entendimento da forma como a Europa funciona era útil para o país.
Voltei para Portugal porque gosto de viver cá.
Ocupou durante dois anos a pasta mais importante do Governo. Quando se foi embora, considerou que a sua credibilidade tinha sido posta em causa por causa das metas não-cumpridas do défice. Tivemos de fazer em três anos aquilo que se deveria ter feito em 10. E, ainda por cima, com escassa capacidade de projectar um futuro que justificasse os sacrifícios. Sem qualquer ofensa, o Vítor Gaspar foi olhado como o quarto dos Três Mosqueteiros [da troika]. Como se viu nesse papel?
Há pelo menos quatro coisas muito diferentes na sua pergunta. Com o devido respeito, a questão de me encarar como o quarto elemento da troika é simplesmente insultuosa.
Mas foi uma ideia bastante generalizada na opinião pública.
Recuso completamente esse papel. O meu papel é o oposto. Tive a honra de representar Portugal nessas negociações. A troika estava sentada do outro lado da mesa. As relações com as equipas da troika foram sempre boas, base fundamental para melhor defender os interesses de Portugal.
O segundo aspecto em que, com o devido respeito, também não está correcta, é relativamente à questão que levanto na minha carta de demissão relativamente à minha própria credibilidade.
Diz explicitamente isso.
Não, digo coisa diferente: o nãocumprimento das metas originais – repito, originais – do programa minou a minha credibilidade. A Teresa falou em incumprimento repetido. Não houve sequer incumprimento, de um ponto de vista formal. Porque as metas iniciais do programa foram renegociadas antes do momento em que o seu incumprimento se colocaria. Isto é, no momento em que os vários números do défice foram constatados, eles estavam conformes aos limites quantitativos do programa em vigor no momento da verificação. A negociação foi sempre feita atempadamente.
Então por que é que se foi embora?
Porque, do ponto de vista interno, escolhi dar uma grande visibilidade política aos limites iniciais [do défice] fixados pelo programa. Podia não o ter feito. Mas fi-lo por escolha política e quando constatei que não era possível cumprir aqueles limites, era natural que eu assumisse as consequências políticas.
Mas essas revisões da meta do défice deveram-se a uma coisa que não estava prevista no programa inicial, que era a recessão generalizada na Europa.
O factor de que fala é importante. A crise global, no momento da aplicação do programa português, está a passar pela fase aguda das crises da dívida soberana na zona euro. E esse período vai de Junho de 2011 até Julho de 2012.
Com a intervenção do presidente do BCE.

As declarações do presidente do BCE em Londres [quando Mário Draghi afirma que o BCE fará tudo o que está ao seu alcance para salvar o euro] que, por sua vez, vêm a seguir à decisão do Conselho Europeu de avançar com o aprofundamento da união económica e monetária. Mas é nesse período entre 2011 e 2012 que a área do euro e a Europa são o epicentro da crise económica global. E essa evolução foi substancialmente mais gravosa do que estava previsto. É também verdade que Portugal não se conformou com o que estava previsto no programa de ajustamento, o que também aconteceu noutros programas. Em momentos de crise, a previsão económica é particularmente difícil e, consequentemente, não é de esperar que os programas possam ser executados


Vítor Gaspar e a sua circunstância

Vítor Gaspar é um
um acto de linguagem e é isso que liga o economista que é e o político que foi
Recensão Miguel Gaspar / 17 fev 2014 / Público

Ministério das Finanças cujo título era qualquer coisa do tipo “Adesão: Custos Certos, Benefícios Incertos”.

Hoje, vejo a situação actual exactamente da mesma maneira. Temos de fazer agora, como tivemos de fazer na década de 80, uma opção sobre o lugar de Portugal no mundo. E, do meu ponto de vista, a opção que devemos tomar é a de querer ser um país desenvolvido, aberto, competitivo na economia global e capaz de se afirmar como membro pleno da área do euro e da União Europeia. Num certo sentido, não seria possível ter um paralelo mais perfeito entre 1984 e 2014. Como é que explica às pessoas que esta Europa ainda vale a pena? Como explicaria em 1984. A explicação parte de mobilizar as forças positivas da Europa, que são fortíssimas. Basta pensar que com a crise gravíssima e os desafios seriíssimos que a Europa está a enfrentar, no passado dia 1 de Janeiro o euro integrou mais um país e, no outro extremo da Europa, na Ucrânia, a Europa ainda é um poderoso denominador comum das forças democráticas, como antes tinha sido em Atenas, Lisboa, Madrid, Budapeste, Praga, Varsóvia e Berlim. ítor Gaspar por Maria João Avillez é um livro sobre um homem e a sua circunstância – uma entrevista de vida que nos situa quanto à circunstância de quem Vítor Gaspar foi, antes de ser Vítor Gaspar, o ministro das Finanças. Mas o que procuramos neste livro é o homem para além dessa circunstância, para tentar compreender o que o torna diferente e o que fica dele após ter sido ministro das Finanças na pior altura possível.
Vítor Gaspar, o entrevistado de Maria João Avillez, não é muito diferente de Vítor Gaspar o ministro. A maneira de falar, lenta e pausada, a densidade argumentativa, a racionalização absoluta que funciona ao mesmo tempo como uma defesa e uma forma de controlo. Gaspar é um speech act, um acto de linguagem, e é isso, essa postura, que liga o economista que é e o político que foi.
E Gaspar, o entrevistado, é um pouco o espelho de Gaspar, o ministro. A um não se lhe arranca uma palavra a mais, tal como ao outro não se arrancava um cêntimo. Gaspar, o ministro, apresenta-se no livro como aquele que tinha por missão aplicar à risca o memorando da troika. Como se fosse um ser desprovido de ideias próprias que no Terreiro do Paço prolongaria a postura do funcionário zeloso que fora em Frankfurt e em Bruxelas. Naturalmente, o livro quer dizer-nos outra coisa. Na longa revisitação ao seu pouco conhecido passado de negociador europeu, nos anos de Maastricht, Gaspar explana longamente o seu pensamento económico sobre a Europa e sobre o país.
Mas afinal quem é aqui Gaspar, o político? Falamos de um homem de uma geração que vê a revolução de 1974 acontecer mas que nunca se deixará seduzir pela política. Escolhe a vida académica e é sempre com sobranceria académica que percorrerá os corredores do poder. Definese como “um espectador da política”. Um tipo da geração que viveu Abril mas era demasiado jovem para se deixar cativar pela militância. Sinal particular: foi uma vez à Festa do Avante!, ouvir Chico Buarque cantar.
De Ernâni Lopes a Sousa Franco, todos os grandes ministros das Finanças portugueses foram homens que tinham o poder (e o apoio de um primeiro-ministro) para dizer não às fantasias que crescem como cerejas na cabeça de quem vive à volta da mesa do orçamento. Se é esse o primeiro critério para definir um ministro das Finanças, Gaspar foi exemplar nessa resiliência.
Fala da política como um fenómeno impossível de domesticar, mas do qual a teoria económica, racional e precisa, não pode alhear-se. Gaspar, o economista, é um pouco um economista imaterial; responde como um filósofo racionalista, sem impulsos e procurando argumentações racionais perfeitas e irrefutáveis. Do alto desse edifício, seguro por convicções inabaláveis, o que mais teme é o imprevisível. Sabe que pensar implica compreender onde estão os limites do conhecimento. O que receia é o que está para lá dessa fronteira. O imprevisível era, por exemplo, como impedir o Estado de gastar dinheiro caoticamente. Ou eram os números do desemprego que desafiavam a lógica do modelo do ajustamento – e seria o desajustamento dos números que invocaria como razão para sair.
E imprevisível era também a política que no discurso de Gaspar é um pouco como a boa e a má moeda de um célebre artigo de Cavaco Silva. Não, Gaspar não despreza a política. A Europa é uma construção política, a liderança política de um primeiro-ministro, Passos Coelho, foi decisiva para enfrentar o ajustamento. E depois, claro, há o político paradigmático, que se move por interesses de curto prazo e que pode ser analisado como se fosse uma espécie biológica específica. Esse político paradigmático é Paulo Portas, a Némesis de Vítor Gaspar.
Portas irrevogavelmente ficou, Gaspar irrevogavelmente saiu. Mas se há algo que Gaspar quer deixar irrevogavelmente impresso na mente do leitor (sem nunca o dizer) é que ele ganhou e Portas perdeu. Porque Maria Luís Albuquerque ficou e as políticas que ele defendeu continuaram e as políticas que o Portas que ficou no Governo defendia queria não vingaram. O título de viceprimeiro-ministro é uma vitória de Pirro, o caso de um homem despojado do seu poder e a quem foi entregue um espelho e um palácio onde ele, paradoxalmente, aparece investido de grande poder.

E o que fica finalmente para a posteridade de Gaspar, o que fica dele para além da sua circunstância, na circunstância futura? Agora que o ar do tempo mudou, parece que queremos esquecer o homem das más notícias porque ele marcou de mais os anos mais negros do ajustamento. Com os seus modos e o seu desassombro, Gaspar foi durante dois anos um mito da política portuguesa. Mas é como se esse mito morasse no passado e este livro esbarrasse nessa evidência de que aquele foi um tempo que passou. Há circunstâncias que não se repetem e estamos demasiado próximos desta para a compreendermos de facto. Há neste livro sobretudo um relato de um combate que ficará na história, feito por um dos seus protagonistas, mas sobre o qual tudo está longe de estar dito.

Sem comentários: