segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Que os partidos se abram ao mundo: voto preferencial já. Sistema eleitoral: desfocar o debate entre Ricardo Costa e Henrique Monteiro


OPINIÃO
Que os partidos se abram ao mundo: voto preferencial já
PAULO RANGEL 14/01/2014 in Público

1.Tenho escrito aqui, a respeito dos mais vários episódios da vida política, que o regime está em crise. Importa tomar consciência que a crise que vivemos não é tão-só económica e financeira. É também uma crise política e, bem mais do que isso, uma crise de valores de escala “societal”. Mostra-se, por isso, crucial perceber que a resolução de alguns dos mais graves problemas das finanças e da economia passa por uma “reabilitação” do sistema político e, em especial, do sistema partidário. A crónica ausência de consenso quanto aos temas estratégicos fundamentais – e, em especial, de consenso operacional, prático, executado no terreno – é um exemplo óbvio da mirração na nossa esfera política-partidária.

Este sentimento agudo de crise está directamente relacionado com o enquistamento e fechamento progressivo dos partidos políticos. Os partidos políticos e os seus protagonistas – aqueles a que se chama habitualmente, e numa amálgama, a “classe política” – são percepcionados, cada vez mais, como entidades e personalidades “desfasadas” e “divorciadas” do quotidiano e da realidade dos cidadãos. Trata-se, com efeito, de uma quebra de credibilidade e de uma falha da confiança. Ora, esta quebra de confiança põe em xeque a viabilidade do valor da representação, valor este que é absolutamente indispensável à democracia (tal como a entendemos e praticamos no mundo ocidental).

2. Muita gente – dentro e fora da bacia partidária – tem consciência deste problema. A verdade, porém, é que a experiência das últimas décadas prova e comprova que os partidos dificilmente são capazes de se reformar por sua própria iniciativa. Existe uma inércia interna, feita de uma cultura de aparelho de poder, que os torna hostis e renitentes a qualquer mudança. Eis o que explica que não adoptem espontaneamente práticas de equilíbrio de género, não promovam motu propriu a limitação e renovação de mandatos executivos, sejam relapsos a qualquer esquema de selecção de candidatos que possa envolver não militantes. Em parcas palavras, o vírus partidário é multi-resistente. O restabelecimento da ligação entre os partidos políticos e os cidadãos tem de passar por um câmbio desta cultura partidária. E este câmbio só pode ser imposto de fora, só pode ser originado por um factor externo (ainda que ele passe por uma decisão interna de adesão a essa mudança). Esse factor é naturalmente a legislação eleitoral. Legislação que há-de ser reformada procurando reforçar designadamente o poder dos eleitores na escolha concreta dos seus representantes.

3. De há muito que circulam nos meios académicos e outrossim na esfera pública (e até especificamente política) as mais diversas propostas de reforma das leis eleitorais. Recentemente, todavia, o debate foi relançado pela proposta do politólogo Pedro Magalhães de introdução do voto preferencial. Proposta secundada pelo Director do Expresso, Ricardo Costa, e logo superada por um antigo Director, Henrique Monteiro. Este foi mais longe e sugeriu a introdução do chamado “sistema eleitoral misto” alemão, que, sem afectar a proporcionalidade, elege metade dos deputados em círculos uninominais. Faz largo tempo que defendo que, nas eleições por lista, deveríamos acolher o voto preferencial, dando finalmente uma oportunidade aos eleitores de imporem a sua vontade aos directórios partidários nacionais e distritais e forçando a abertura dos partidos à dinâmica da sociedade. E, se isso for possível, nas eleições para a Assembleia da República, preferia mesmo a adopção do sistema misto. Não tenho qualquer ilusão sobre medidas com eficácia mítico-mágica para a refundação do sistema político e da sua infraestrutura partidária. Mas não tenho também sombra de dúvida que a adesão ao voto preferencial e a instituição de uma rede de círculos uninominais contribuirá relevantemente para alterar a cultura “endogâmica” dos partidos e para abrir o sistema político aos cidadãos. Diminuirá o peso dos aparelhos e da nomenclatura e aumentará a influência e a voz dos eleitores.

4. Os partidos da maioria – e, em particular, o PSD, de que sou militante – têm-se reclamado de uma agenda reformista para o país. Mas têm centrado a execução dessa agenda nos domínios económico e financeiro, subordinando a dimensão político-institucional à sua relevância económico-financeira. Não pode recriminar-se o sobrepeso do Estado na vida económica e financeira e ignorar o excesso de peso dos partidos (e do seu aparelho de poder) na vida política. Não pode querer-se, em nome das gerações futuras, libertar a sociedade civil e manter, em estado de menoridade, os cidadãos das gerações presentes. De resto, não é de excluir que uma parte daquele peso excessivo do Estado anda associado ao peso excessivo das máquinas partidárias.


Creio que é tempo de o PSD – em pleno ciclo eleitoral interno – liderar uma agenda de renovação do sistema eleitoral, lançando pontes para todos os outros partidos (em especial, para o PS e o CDS). As eleições para o Parlamento Europeu revestem características únicas para se testar o voto preferencial. Apesar da proximidade de calendário, não vejo nenhuma razão para não se lançar este repto, abrindo os critérios da escolha partidária às preferências sociais, reforçando o poder dos cidadãos na escolha dos seus deputados e criando um novo e enorme incentivo à participação. Avancemos, pois, nesta ofensiva política. Para que os partidos se abram ao mundo. E para que o mundo não se feche aos partidos.

Sistema eleitoral: desfocar o debate entre Ricardo Costa e Henrique Monteiro
Daniel Oliveira
Terça feira, 14 de janeiro de 2014 in Expresso online

Chego tarde à discussão mas também quero meter a colher no debate entre Ricardo Costa e Henrique Monteiro sobre sistemas eleitorais. Para desfocar um pouco. Ricardo Costa apresentou aqui , na semana passada, uma proposta que incomodaria os partidos e que vinha de Pedro Magalhães (num trabalho de Henrique Monteiro, no Expresso): listas abertas, cujo ordenamento de nomes pudesse ser alterado pelos eleitores. Pedro Magalhães dá, no seu blogue , o exemplo da Finlândia.

No entanto, confesso que prefiro aquele que julgo ser o sistema holandês (esquecendo, por agora, o facto de ter um círculo único), de listas semiabertas, em que o ordenamento existe e pode ser alterado ou aceite tacitamente, se os eleitores nada indicarem. É esse sistema que defendo já há alguns anos. Seria uma excelente forma de, mantendo a proporcionalidade e o papel dos partidos políticos, disciplinar o seu próprio autismo. E garantiria uma das principais correções de que a democracia representativa portuguesa precisa: quebrar a obediência cega dos deputados ao líder, que acaba por resultar na submissão do Parlamento ao governo, em vez de suceder, como prevê a Constituição, o contrário.

O sistema holandês é, na minha opinião, melhor do que uma lista completamente aberta (sem qualquer ordenação, como acontece para a Câmara de Deputados, no Brasil), que transforma os partidos em meras federações de candidatos e em que cada candidato tem no seu colega de filiação o principal adversário. Em democracias pouco maduras pode ser completamente destrutivo das organizações partidárias. A esta proposta acrescentaria a possibilidade de listas de cidadãos apresentarem-se às eleições legislativas. Não tenho ilusões que o resultado fosse muito diferente do que é conseguido em autárquicas. Mas, ao menos, impediria que as direções partidárias pura e simplesmente retirassem das listas os candidatos menos disciplinados ou menos ligados às estruturas internas.

Em resposta a Ricardo Costa, Henrique Monteiro veio apresentar uma proposta alternativa, de autoria de Rui Oliveira e Costa, que, usando o título escolhido por Ricardo, assustaria ainda mais os partidos : o sistema misto, com círculos uninominais e um circulo nacional, semelhante ao alemão. Confesso ter dificuldade em perceber porque acha o Henrique que a sua proposta incomoda "ainda mais" os partidos. Henrique faz a distinção: irrita as distritais. Mas, diga-se em abono da verdade, deixa os dois principais partidos bastante satisfeitos. A prova disso é dada por ele mesmo, no seu artigo: António Vitorino e Marques Mendes, os dois mais acabados exemplos do espírito partidocrata, concordam com a ideia. E é natural que concordem. Ela garantiria uma representação partidária ainda mais significativa ao PS e ao PSD. Para regenerar a política, não me parece o melhor começo.

Dirão que o sistema proposto é misto e isso resolve o problema. Tenho muitas dúvidas. Os sistemas eleitoral não se limitam a mudar a forma de eleger deputados. Círculos únicos nacionais favorecem o voto em pequenos partidos, círculos uninominais favorecem o voto nos maiores partidos, círculos de média dimensão (como temos) favorecem o voto em partidos médios. Não apenas pela forma como se elegem os deputados, mas pelas dinâmicas políticas que cada sistema alimenta. E o sistema misto entre círculos uninominais e um circulo nacional, não levando diretamente ao bipartidarismo, cria uma dinâmica política que tendencialmente o favorece. Porque o voto no círculo uninominal, fortemente bipartidário, acaba por contaminar toda a eleição, determinando o voto no circulo nacional.

Pelo menos em Portugal, só uma minoria vota de forma diferenciada em diferentes boletins de voto. Não é preciso ir longe para encontrar o indício desse comportamento dos eleitores. Basta acompanhar o voto dos portugueses em eleições autárquicas para perceber como, tirando fenómenos locais excepcionais, o voto para a Assembleia de Freguesia e para a Assembleia Municipal é, na prática, determinado pelo voto para a Câmara Municipal. Melhor: pelo voto para o presidente da Câmara, já que, apesar da lei, o cargo acaba por ser, para a maioria dos eleitores, de eleição quase uninominal. Ou seja: com círculos uninominais a serem, naturalmente, o centro da disputa eleitoral, o circulo nacional tenderia, apesar de algum desvio, a reproduzir o voto bipolarizado da eleição local, alterado muito a proporcionalidade atual. E, para além disso, acentuaria os egoísmos locais que, inevitavelmente, os eleitos por círculo acabariam por representar.

Mesmo partindo do princípio que este sistema aproximaria os eleitos dos eleitores (tenho todas as dúvidas e gostaria de ver estudos sobre o assunto que o comprovem), ele afetaria um bem que, na minha opinião, é muitíssimo mais relevante para a saúde da democracia: a representatividade política do Parlamento. Muito mais portugueses se sentiriam excluídos da representação democrática. E pontos de vista relevantes na sociedade portuguesa estariam condenados à exprimirem-se exclusivamente fora das instituições democráticas e, cada vez mais, contra elas. Ora, parece-me que, nas democracias europeias, não vivemos tanto uma crise de proximidade, mas muito mais uma crise de representação. Perguntem aos ingleses se se sentem bem representados e se confiam nos seus deputados, eleitos em círculos uninominais. A crise da democracia representativa tem a ver com uma efervescência e velocidade modernas que cada vez mais dificilmente podem ser representadas pelas instituições. Com a crise das grandes narrativas e das formas intermediação social e política. Mas, acima de tudo, com a degradação do poder dos Estados Nação e das suas instituições e com a degradação das condições de exercício da própria democracia.

Se olharmos para os números da confiança dos cidadãos na democracia percebemos que o fundamental é outra coisa: a confiança no poder político é, em geral, maior nos países com altos níveis de igualdade e também com Estados Sociais mais robustos. Se virmos o recente estudo da Demos, "Democracy in Europe can no longer be taken for granted..." , com os melhores indicadores democráticos (respeito pelo Estado de Direito, controlo da corrupção, respeito pelas liberdades fundamentais, envolvimento cívico e até, vejam bem, protestos públicos, estabilidade) surgem quase sempre a Finlândia, a Suécia, a Dinamarca, a Holanda, a Áustria, o Luxemburgo e, por vezes, a Alemanha e a Bélgica. Em relação às posições dos cidadãos sobre o regime (se querem um líder forte, se confiam nos outros cidadãos ou se sentem que têm um controlo sobre as suas vidas), havendo, por razões históricas, alguns países "intrusos", os melhores são, em geral, também estes. Todos países que surgem no topo duma distribuição equitativa da riqueza e que são, quase todos, exemplo daquilo a que chamamos "modelo social europeu".

Porquê? Porque a democracia não é apenas uma forma de organização institucional. Não há democracia representativa que funcione num país onde a desigualdade social impede o exercício da cidadania por parte de todos. A igualdade não chega para a democracia, mas ela é condição para a sua saúde. Porque a desigualdade destrói o sentimento de pertença a uma comunidade e a empatia entre os cidadãos, de que a democracia depende. Sem isto, não há cidadania ativa. E não há Estado transparente onde essa cidadania não seja exercida de forma efetiva. E não há deputados que realmente representem a vontade dos cidadãos sem transparência política.


As leis eleitorais podem favorecer a estabilidade ou a representatividade, a proximidade ou a coesão política. Podem corrigir entorses no sistema político. Mas não são o coração da democracia. A crise democrática que vivemos é uma crise social e cultural, não é uma crise institucional. Devolvam o poder aos Estados e empenhem-se em políticas que fomentem a igualdade social e verão como os cidadãos terão muito mais confiança nos deputados, sejam eles eleitos por que círculo forem. Essa confiança não resultará apenas da sua satisfação pessoal. Resultará do facto de lhe terem sido devolvidas as condições para exercerem com eficácia os seus direitos democráticos.

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