domingo, 26 de janeiro de 2014

“As reitorias nunca tiveram vontade de expulsar as praxes ou de as domesticar sequer”. Praxe, polémica e violência, uma história com séculos.

Crato chama reitores e alunos para discutir praxes
O Ministério da Educação e Ciência (MEC) chamou "as associações de estudantes dos estabelecimentos de ensino superior, públicos e privados" para uma reunião "sobre praxes académicas", na sequência dos casos do Meco e da Universidade do Minho.
O encontro vai realizar-se esta semana, em princípio na quinta-feira. O MEC vai ainda "abordar esta questão" com o conselho de reitores e o conselho coordenador dos politécnicos, durante as reuniões regulares, que estão marcadas para as próximas duas semanas.
Em resposta enviada ao DN, sobre se ia tomar medidas em relação à possível ligação da morte dos seis jovens arrastados por uma onda no Meco a rituais de praxe e o caso do professor da Universidade do Minho que tentou travar uma praxe e diz ter sido humilhado, o MEC respondeu que "está a acompanhar com toda a atenção estes acontecimentos e pretende discutir e estudar com alunos e responsáveis das instituições as melhores formas de prevenir este tipo situações, de extrema gravidade.
in DN online


“As reitorias nunca tiveram vontade de expulsar as praxes ou de as domesticar sequer”
SAMUEL SILVA 25/01/2014 – in Público
A socióloga Rita Ribeiro mergulhou no universo das praxes académicas. Fala em casos de tribunal, em responsabilidade individual e diz que um dos problemas é que "isto são brincadeiras de crescidos".

O episódio é contado na investigação académica da socióloga Rita Ribeiro sobre praxes académicas. Um grupo de alunos estava à volta de um lago numa praxe quando os colegas mais velhos dão a ordem de saltar. Em vez de molharem os pés e saltitarem, os mais novos atiraram-se para dentro de água. “É o exemplo do clima de intimidação e de quem está sempre à espera do pior”, diz a professora da Universidade do Minho (UM).

Foi este o ambiente que encontrou no trabalho de campo que fez, inicialmente sob o ponto de vista da antropologia, olhando as praxes enquanto ritual de passagem. Foi também autora – juntamente com outro sociólogo da mesma universidade, Carlos Gomes – de um relatório sobre as praxes na UM, encomendado pela reitoria da instituição. “A intenção nunca foi julga-las, antes entendê-las”.

O que explica esta necessidade de os jovens estudantes enfatizarem esta etapa da sua vida?
Por um lado, há uma questão histórica e uma ideia de tradição, que é sempre usada como discurso legitimador. Depois, as praxes funcionam como um sinal da elevação estatutária que significa a entrada para o ensino superior. Para todos os efeitos, este ainda é um sector minoritário na sociedade portuguesa. Essa dimensão elitista leva a que se valorize a entrada na universidade. O traje e todos os signos da praxe são formas de os alunos sentirem um reconhecimento estatutário por parte da sociedade.

Mesmo para aqueles que são praxados?
Talvez até mais para esses, porque é um momento em que isso é visível para todos. Quando vão na rua com a cara pintada e não se importam com isso é porque estão a dizer aos outros: “Eu entrei para a universidade”. As praxes eram uma prática da Universidade de Coimbra e entraram em declínio nos anos 1960, por questões políticas. Emergiram no final dos anos 1980 e ganharam força nos anos 1990, precisamente quando o ensino superior se democratiza.

Não seria expectável que fosse ao contrário: a partir do momento em que alarga o espectro dos que entram na universidade, o peso simbólico é menor?
Podia ser assim, mas, apesar dessa massificação, só uma percentagem muito restrita da população entra na universidade. Sobretudo naquela altura [anos 1990], em que havia uma forte pressão de procura e muitos dos que se candidatavam não entravam.

O possível embaraço público pesa menos do que o sentimento de orgulho por pertencer a esta comunidade?
Tirando aqueles alunos que participam porque não têm capacidade para se escusar a fazê-lo, na grande maioria das situações que pude recolher é isso que acontece. As pessoas sentem-se [impelidas] a participar de livre vontade. Muitas vezes, esse embaraço nem sequer é sentido, porque o lado provocatório que a praxe tem estimula-os. Estão a fazê-lo em grupo, a coberto de uma tradição, e isso funciona para alimentar essas práticas.

Qual é o papel das reitorias ou das direcções das faculdades neste processo?
Nunca tiveram muita vontade de expulsar as praxes ou de as domesticar sequer. Há aqui questões políticas, porque os reitores precisam de ter os alunos do seu lado. E, para muitos alunos, uma posição mais forte contra as praxes pode ser vista como uma afronta. A solução também não está numa rejeição completa, até porque as praxes parecem-me mais perigosas quando estão fora das universidades do que quando estão dentro. Algum equilíbrio da domesticação destas práticas é o ideal, mas não é fácil de se conseguir.

Dizia que a tradição aparece muitas vezes como discurso legitimador da praxe. Mas em universidades como a do Minho ou a de Aveiro, que são recentes, que tradição existe?
É uma tradição inventada, como são quase todas. O que há é uma recuperação de práticas históricas que são mobilizadas para aquilo que são os interesses dos estudantes. Estas tradições existiam em algumas universidades antigas – no caso português, Coimbra. O que as universidades novas fizeram foi apropriar-se destas práticas e, simultaneamente, dar-lhes uma tonalidade local, recuperando histórias mais ou menos mitificadas acerca daquilo que os estudantes liceais de cada cidade faziam ou das instituições eclesiásticas que tinham uma componente de ensino superior. Isso é também uma forma de legitimação, sobretudo numa universidade nova que precisa de criar uma identidade.

Na sua investigação, escreve que as regras da praxe são “implícitas” e “informuladas”. Como é que isso se explica?
Num ritual, sabe-se o que se deve fazer, mas muitas vezes o sentido das coisas está implícito. Por isso é que eles são polissémicos, servem para muita gente. E agregam vontades devido a essa plasticidade. Quando lemos o código de praxe, está lá um conjunto de limitações, mas não diz como fazer. O como fazer é uma prática que se constrói e que se reproduz num certo contexto institucional.

Mas há regras mais óbvias?
Embora operando numa lógica do implícito, estruturalmente, estão lá os significados. No caso da praxe, elas são interessantes do ponto de vista do estudo dos rituais devido a duas dimensões. Os pilares em que assentam são a hierarquia e o igualitarismo entre aqueles que são praxados. A praxe desenvolve-se nesta tensão permanente de reprodução das estruturas hierárquicas da sociedade de uma forma muito linear. E, ao mesmo tempo, do lado dos que estão a ser iniciados, é promovida a sua homogeneização, o seu nivelamento, a sua desinvidualização.

Essa é uma das críticas mais frequentes à praxe: o nivelamento e esta reprodução da hierarquia. No trabalho de campo, isso é uma coisa óbvia?
Está no nível estrutural daquilo que são os rituais associados à praxe, mas está. Há uma violência hierárquica muito forte, sobretudo nos primeiros tempos de praxe. Ao mesmo tempo que há uma completa formatação daqueles que estão a ser praxados e um apagamento das individualidades. Esta é uma prática comum a todas as instituições em que estão muitas pessoas juntas durante muito tempo, como as forças armadas ou os mosteiros.

Quando alguma coisa corre mal, é comum que as estruturas associadas à praxe não falem. O silêncio também é uma das regras implícitas?
Tal como outros rituais desta natureza, as praxes servem para constituir aquilo a que alguns autores chamam o espírito de corpo. Isso significa sempre que estamos a criar uma certa identidade entre nós e a afastar os que não têm o direito a passar pelo mesmo. Esse pacto de silêncio que às vezes se percebe tem a ver com isso: há uma protecção dos nossos. Se a praxe consegue alguma coisa é isso, é criar um espírito de corpo, uma identificação com a universidade, com um curso, com um grupo de pessoas. Do ponto de vista sociológico ou antropológico, quando os grupos se formam passando por este tipo de práticas violentas, reforçam ainda mais esse espírito.

Como é que se conciliam estas regras implícitas com o anúncio feito em Agosto de 2012, por nove estruturas académicas, de criação de um código de praxe comum para o país todo?
Provavelmente, estamos apenas no domínio da intenção. Não vejo que seja muito possível essa cooperação tão estreita entre diferentes universidades, que criaram “tradições” de praxes diferentes. Até pode ser que se chegue a esse código, mas será sempre suficientemente vago e pouco operativo.

Onde é que a praxe se cruza com a lei?
Essa é uma zona de sombra. Todas as sociedades acabam por ter esta capacidade de acomodar certas práticas que estão contra os valores explícitos ou a lei. Qualquer juízo baseado na nossa lei condena muitas das coisas que se passam na praxe e muitas delas são efectivamente situações de tribunal. Mas o significado que nós atribuímos de fora não é o significado que está a circular dentro do grupo que está a ser praxado e está a praxar. Temos que ver as praxes como uma dramatização feita por um grupo. É esse jogo de papéis que está ali a acontecer. Fora deste contexto específico, aquilo são situações intoleráveis.

Mas há espaços para a lei eventualmente intervir?
Apesar de as ver nesta óptica da dramatização, é evidente que não deixamos de estar numa sociedade onde há regras muito explícitas acerca dos direitos das pessoas. Essa subversão é calendarizada, sabe-se quando e onde pode acontecer e também se sabe quando e onde não pode acontecer, e é este contexto específico o que leva as instituições universitárias e a sociedade em geral a tolerarem as praxes. Mas não deixam de ser cidadãos que estão envolvidos. Há aqui também uma questão que é muito importante: a responsabilidade individual tanto de quem praxa como de quem é praxado. Quem é praxado também tem responsabilidade, porque está ali porque quer.

É, de facto, possível dizer que não à praxe?
Dependerá muito das universidades, dos cursos, de quem está a dirigir as comissões de praxe, mas é possível dizer que não. E há também estruturas institucionais que são capazes de ajudar, como o provedor do estudante, que é uma figura relativamente nova.

Quem participa também assumiu que aquelas eram as regras do jogo?
Mas a qualquer momento tem que poder dizer que não. O mais importante no trabalho pedagógico junto dos alunos é que, a qualquer momento, devem poder parar o jogo. Essa responsabilidade individual não pode ser esquecida.

Nos dois casos mais mediáticos que chegaram a tribunal – a Universidade Lusíada foi condenada a pagar uma indemnização à família de um aluno que morreu na sequência de uma praxe, em 2001, e o Instituto Piaget também teve que compensar uma aluna que se queixou da violência da praxe, em 2002 –, a condenação recaiu sobre a instituição e nunca sobre os indivíduos. É difícil que o ascendente que alguém tem sobre outro no âmbito deste jogo possa ser entendido como estando para lá da fronteira da lei?
Não sei como é que os processos foram tratados do ponto de vista judicial, mas imagino que, tal como em muitas outras situações que cruzam o domínio da lei, seja possível atribuir responsabilidades e culpas que vão para além desta forma quase abstracta de condenar uma instituição. Se sabemos que acontecem situações muito graves, elas têm protagonistas. A cumplicidade que a sociedade portuguesa tem com as praxes está em todo o lado.

O álcool e as drogas também fazem parte da praxe?
Em relação às drogas, não me deparei com nenhum caso. Mas o álcool faz parte. Algumas praxes ocorrem à noite e ocorrem quase sempre tendo o álcool também como actor. Os estudantes passam pelos bares e muitos deles são constrangidos a beber.

O que é que justifica que um país que se mobiliza com o bullying no ensino obrigatório tolere estas práticas no superior?
Há uma razão muito simples: estamos a falar de adultos. Não podemos esquecer isso. É difícil fazer uma intervenção quando estamos a falar de pessoas que estão ali de livre vontade. Seria preciso provar que estão na praxe fortemente coagidos e intimidados e isso não acontece, na maior parte dos casos. Isto é uma brincadeira de gente crescida.




Praxe, polémica e violência, uma história com séculos
ANDREIA SANCHES 25/01/2014 – in Público

Foi proibida pelo rei. Foi debatida nos jornais, de forma apaixonada, em diferentes momentos. Caiu com a crise académica. Emergiu com a massificação do ensino. Que praxe é esta?

Há algumas ideias feitas sobre a praxe dos estudantes. Por exemplo: que os abusos são coisas da História recente; que ela é igual em todas as universidades; que o termo se refere apenas aos “castigos” aplicados aos alunos do 1.º ano. Não é bem assim.

Os castigos sobre os mais novos, como os “canelões” (os mais velhos davam pontapés nas canelas dos recém-chegados a Coimbra), eram praticados já no século XVII. Não se fala, então, de “praxe”, antes de “investida”. E esta podia incluir “insultos”, “troças” ou castigos, como obrigar o jovem aluno a prestar serviços aos mais velhos (limpando-lhes os sapatos, por exemplo).

Por vezes, as “investidas” degeneravam. “Não havia defensa daquelas bárbaras e indecentes investidas, feitas com violência e desacatos, armados os agressores como para assaltar um castelo: e destes excessos resultaram mortes, incêndios e sacrilégios”, escreveu o médico e filósofo Ribeiro Sanches (1699-1783).

Em 1727, D. João V determina o seguinte: “Mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos.” Mas a praxe resiste. É de 1765 a Macarrónea Latino-Portuguesa, “conhecida pelo título da primeira composição, publicada em 1746 – o Palito Métrico”, onde se “descreve e prescreve”, nas palavras da socióloga Maria Eduarda Cruzeiro, a relação com os “caloiros”. No século XIX, os novatos são “tosquiados”, obrigados a cantar e a dançar. Em 1873, um estudante, depois de ver o cabelo cortado à força, mata um dos agressores.

António Manuel Nunes explica, em 2004, nos Cadernos do Noroeste, que alguns rituais envolviam também alunos mais velhos, caso do hábito de “rasgar as vestes e ser violentamente sovado com palmadas no momento em que se acabava o curso”. Por meados do século XIX, o termo “praxe” substitui “investidas”, “caçoadas” e “troças”. “Desde essa data, a Praxe Académica reúne numa mesma unidade semântica os comportamentos característicos, e até dispersos, do universo académico”, diz Aníbal Frias, num artigo publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, em 2003. E “emerge devido a um aumento da concorrência entre a velha Universidade de Coimbra e outros estabelecimentos de ensino superior, técnico-científicos, então criados em Lisboa e no Porto. Uma competição que se acentua (...) com a criação das universidades de Lisboa e do Porto em 1911, e, sobretudo, depois do 25 de Abril de 1974, com a multiplicação das universidades novas e dos institutos politécnicos, em busca de uma legitimidade e de uma ‘alma’.”

Moca, colher e tesoura
No início do século XX, há histórias célebres de tentativas de suavizar as praxes, como a do jovem Aristides de Sousa Mendes, futuro cônsul, e do seu irmão gémeo César, que promoveram as “Festas de recepção aos novatos” na Universidade de Coimbra, onde estudavam Direito em 1905. Com José d’Arruella e outros “rapazes cheios de intenções generosas”, o grupo recebeu os caloiros com poesia, música e teatro, numa tentativa de pôr fim à “velha usança das troças” que, por vezes, se tornavam “sumamente agressivas”, conta Lina Alves Madeira, na revista Rua Larga, da UC. Na altura, a iniciativa foi saudada por Guerra Junqueiro, Gomes Leal e Bernardino Machado. Com a proclamação da República, a praxe quase desaparece. Mas, em 1916, “uma representação assinada por 825 estudantes” reclama-a. E estala o debate, de novo. “Abaixo as praxes ridículas e inoportunas!”, lê-se num artigo de 14 de Dezembro desse ano, publicado no bissemanário A Resistência.

A primeira tentativa de codificação da praxe de Coimbra no século XX é também de 1916, segundo Maria Eduarda Cruzeiro. Chama-se Leis Extravagantes da Academia de Coimbra ou Código das Muitas Partidas e tem na capa “a triologia simbólica da perseguição aos caloiros” – a moca, a colher e a tesoura, símbolos que resistem até hoje – “e ainda uma figura de veterano aplicando com uma colher a sanção de unhas a um caloiro”. A colher, por exemplo, é, segundo Frias, um símbolo dos castigos escolares – remete para a palmatória dos professores, que “aponta as letras do alfabeto no quadro, que apruma os corpos e os espíritos, que marca o ritmo dos exercícios”.

Em 1957, o Código da Praxe Académica de Coimbra, então aprovado, define praxe como “o conjunto de usos e costumes tradicionalmente existentes entre os estudantes de Coimbra e os que forem decretados pelo Conselho de Veteranos”, definição que permaneceu até hoje. O debate pró e contra a praxe volta às páginas dos jornais. O Diário de Lisboa publica durante dias a fio cartas e artigos em tom inflamado. “Se há caloiros que tudo suportam, há os que não sofrem sem raiva no coração as humilhações impostas por indivíduos tantas vezes intelectualmente coxos”, lê-se num deles. Responde outro: “O que se pretende com as inofensivas brincadeiras a que os caloiros são submetidos é ver como estes reagem a elas e, se for caso disso, tentar demonstrar-lhes que a excessiva arrogância e o amor-próprio em demasia ser-lhes-ão prejudiciais na sua vida futura.”

No jornal República, a associação académica faz saber que a praxe é um “assunto da exclusiva competência dos estudantes de Coimbra [...] e só a eles cabe (se o entenderem!) actualizá-la”.
Esta visão da praxe como algo que escapa ao controlo do exterior é recorrente. Miguel Cardina, num número da Revista Crítica de Ciências Sociais, de 2008, diz que a praxe é “uma reminiscência” do tempo em que existia em Coimbra um “foro académico” – ou seja, uma jurisdição universitária (com tribunal, prisão e polícia próprios).
Ainda na década de 1960, com a crise académica, a praxe é abolida. E uma reportagem de 1973, no República, descreve uma Coimbra sem capa nem batina, onde os estudantes haviam perdido o seu “estatuto especial”. Mas havia saudosos da praxe.

“Entre 1978 e 1980, alguns elementos da Praxe Académica foram reactivados” na cidade, conta Frias. Esta “restauração” desenvolveu-se em várias etapas: em 1978, assistiu-se “à ressurreição do fado”, o qual “havia sido parcialmente destronado” pelo canto de intervenção; em 1979, com o apoio da direcção social-democrata da Associação Académica de Coimbra, organiza-se uma “Queima das Fitas disfarçada”; em 1980, regressam a Queima das Fitas, a capa e a batina... e as praxes.

Esfregada com esterco
A década de 1980 e 1990 marca a explosão do ensino superior em todo o país. Nascem novas instituições, públicas e privadas, para dar resposta à crescente procura de formação por parte de jovens de diversas origens. Nos anos 1990, os rituais vulgarizam-se. Frias fala de “praxes híbridas”, “onde os empréstimos do modelo coimbrão se associam a traços locais”. Um inquérito aos estudantes de Coimbra conduzido pelo sociólogo Elísio Estanque entre 1999 e 2000 revela que só 3,3% pensam que a praxe deve ser abolida por a acharem violenta.

Depois de 2000, vários ministros da Educação mostram-se preocupados com alguns relatos. O caso de Ana Santos é dos mais mediáticos. “Obrigaram-me a colocar na posição de ‘Elefante Pensador’ (joelhos, cabeça no chão e mãos debaixo dos joelhos com as palmas viradas para cima). Fui insultada por tempo que não consigo quantificar (...). Fui esfregada com esterco – camada sobre camada, cara, pescoço, peito, costas, barriga, cabelo”, tendo sido obrigada a ficar “em pé a secar ao sol” – era este o teor da carta da aluna da Escola Superior Agrária de Santarém ao então ministro Pedro Lynce. Estávamos em 2002.

A aluna contou que a dois caloiros, como ela, foi ordenado que lhe mergulhassem a cabeça num bacio com excrementos. Tudo começou quando atendeu um telefonema da mãe. Os caloiros estavam proibidos de falar ao telefone.

Em 2007, o regime jurídico das instituições de ensino superior passou a prever sanções para quem, nas praxes, passasse das marcas. Mas os casos sucederam-se.

“A relativa desvalorização social dos títulos académicos (que deriva da própria massificação da certificação escolar) e a necessidade de legitimação de novas instituições foram um poderoso factor do renascimento das praxes enquanto retórica de tradicionalismo”, lê-se num relatório do Parlamento, em 2008, cuja relatora foi a deputada Ana Drago.

Nesse ano, o caso de Ana Santos chegou ao tribunal. Durante o julgamento, um ex-professor declarou que era “preciso desmistificar as fezes” e o director da escola fez saber que também tinha “recebido bosta no corpo”. Mas seis jovens que praxaram a aluna acabaram condenados por ofensa à integridade física qualificada e um sétimo pelo crime de coacção. Tiveram de pagar multas.

No mesmo ano, o Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros foi condenado a pagar 40 mil euros a uma estudante vítima de actos “degradantes e humilhantes”. E, em 2009, foi dado como provado que o aluno Diogo Macedo tinha morrido, oito anos antes, por causa de uma pancada na nuca, na Universidade Lusíada de Vila Nova de Famalicão, onde estava a participar num ensaio da tuna.

Apesar de já estar no 4.º ano, Diogo nunca passara de “tuninho” (o grau mais baixo na hierarquia) e era frequentemente submetido a praxes. O caso chegou a ser arquivado pelo Ministério Público, em 2004, por falta de provas, mas a mãe do aluno exigiu uma indemnização, na esperança que mais dados surgissem sobre o que se passara. Já em 2013, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a condenação da Lusíada: cerca de 91 mil euros por danos morais.

Auscultados responsáveis de universidades e politécnicos, o relatório de 2008 do Parlamento concluiu que imperava “o entendimento de que as praxes académicas são um universo autónomo e, em certa medida, exterior às próprias instituições”, que “os órgãos de gestão se devem abster de intervir” e que cabe “aos organismos da praxe e aos próprios alunos” prevenir e sancionar as situações de abuso. Mas também houve reitores, como Mário Moutinho, da Universidade Lusófona de Lisboa, a defender uma proibição que viesse de cima: “Julgamos que orientações superiores facilitando a sua proibição em muito ajudariam esta universidade a rejeitar liminarmente a realização de praxes académicas.” com Sérgio Gomes


Fontes: Aníbal Frias, Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias, in Revista Crítica de Ciências Sociais, 2003; António Manuel Nunes, As praxes académicas de Coimbra: uma interpelação histórico-antropológica, in Cadernos do Noroeste, 2004; Miguel Cardina, Memórias incómodas e rasura do tempo: Movimentos estudantis e praxe académica no declínio do Estado Novo, in Revista Crítica de Ciências Sociais, 2008; Elísio Estanque, A tradição e o movimento estudantil na Universidade de Coimbra; Maria Eduarda Cruzeiro, Costumes estudantis de Coimbra no século XIX, in Análise Social, 1979; Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra (Rei dos Livros, 1990)


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