sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Calçada portuguesa, sim ou não? Um contributo para o debate sobre um “símbolo nacional”


OPINIÃO
Calçada portuguesa, sim ou não? Um contributo para o debate sobre um “símbolo nacional”
LUIS N. FILIPE , TIAGO VERAS e JOHANNES BOUCHAIN 13/12/2013 – in Público

A calçada portuguesa é um património de grande valor e parte da identidade nacional.

Notícias recentes sobre a sua eventual substituição fizeram surgir diversas reações defendendo-a apaixonadamente, pelo que se torna oportuno lançar um debate ponderado sobre o assunto.

Quando surgiu, a calçada não tinha as exigências ou pressões atuais. Os passeios eram apenas o remate das ruas e não dedicados à exclusiva circulação de peões – não é raro verem-se fotografias antigas em que os peões circulam pelas ruas. Por outro lado, ainda que na altura existissem pessoas com dificuldades em mover-se, estas não eram consideradas no desenho das ruas e passeios.

A mão-de-obra era abundante e barata ou mesmo gratuita (muitos “calceteiros” eram presidiários), o que tornava a execução e reparação da calçada bastante rápidas. A técnica de calcetar desenvolveu-se, a estética apurou-se, e isto, aliado ao seu baixo custo, tornaram a calçada uma solução popular. Criaram-se escolas de calceteiros e a calçada foi paulatinamente aplicada por toda a cidade. Aos poucos, com os seus desenhos característicos, a calçada tornou-se um elemento distintivo da cidade, adquirindo o estatuto identitário de património.

Entretanto, o mundo mudou, e o “mundo da calçada” mudou particularmente. Intensificou-se o uso do automóvel e a circulação pedonal foi segregada para os passeios. Novos usos e costumes democratizaram os espaços e diversificaram-se os seus utilizadores – incluindo os de mobilidade naturalmente condicionada. A calçada passou a ter novas exigências e a ser cada vez mais solicitada.

A mão-de-obra barata e intensa qualificou-se, encareceu e escasseou; a cidade expandiu-se como nunca antes tinha acontecido. Calcetar tornou-se caro, e o esforço inicialmente despendido na execução da calçada foi necessariamente reduzido. A qualidade da calçada baixou inevitavelmente.

Com a pressão do estacionamento, os automóveis “transbordaram” das ruas e invadiram vorazmente o espaço a que antes tinham restringindo os peões – os passeios. A calçada, já decadente, ficou fatalmente ferida. E é essa, a calçada atual, que está no centro deste debate.

Notícias recentes sobre a intenção da CML de substituir a calçada fora das áreas históricas por outro tipo de pavimento levantaram vários protestos e petições contra a iniciativa. Ainda que obviamente lícitos, esses protestos baseiam-se sobretudo no “valor emocional” da calçada e não nas suas qualidades como pavimento. Contudo, sendo o fim último da calçada permitir uma circulação confortável e segura, devia ser este o cerne da discussão. Caso contrário, será como discutir a escolha de uns sapatos com base no seu aspeto e não no uso que lhes será dado.

É quase unânime que a calçada é bonita e de grande valor patrimonial, mas será que se adequa às exigências atuais e que deve ser indistintamente aplicada em toda a cidade?

Pedras soltas e buracos, depressões e lombas, lixo e ervas a crescer entre as pedras, entre outros problemas, são a regra e não a exceção nas calçadas atuais. Além disto, mesmo as calçadas bem cuidadas acabam por moldar-se ao terreno em que assentam e por criar um pavimento irregular. Tal torna a caminhada desconfortável e põe em risco os que se deslocam a pé. É mesmo este o piso que queremos? Não é por acaso que se veem tantos peões a caminhar sobre as recentes ciclovias de Lisboa ou idosos que preferem as bermas aos passeios – qualquer destes pavimentos é mais confortável do que a calçada! Por outro lado, a aplicação indiscriminada (até em separadores de via!) torna banal um pavimento que devia ser especial.

A substituição da calçada por um pavimento mais adequado aos usos e à envolvente, com menores custos de construção e manutenção, pouparia recursos que poderiam ser aplicados na valorização dos pavimentos de calçada mais emblemáticos, não só os das áreas turísticas mas também os das avenidas da República ou Almirante Reis, citando apenas dois exemplos. Importa também perceber se, com criatividade, não será possível criar um outro pavimento igualmente distinto e esteticamente apelativo, mas melhor e mais atual.

À pergunta 'sim ou não à calçada?’, a resposta pode então ser 'sim e não' – manutenção e valorização nas zonas que o justifiquem, e utilização de outros pavimentos na restante cidade. O que parece uma ameaça pode na verdade ser uma oportunidade para melhorar e até inovar. É uma questão de ponderação e sobretudo de debate sério, informado e desapaixonado.




Projeto LXAMANHÃ (http://www.lxamaha.pt)

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