sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Uma estranha noite portuguesa.O Estado de Direito não se desfez, mas a excepção criada abriu um precedente de força simbólica.

"É preciso ter a consciência de que a violência está à porta", alertou Soares.
Helena Roseta: Violência é legítima para pôr cobro à violência que tira direitos e meios de subsistência


“As palavras de Mário Soares e de Helena Roseta foram aplaudidas, mas, como a polícia, no outro lado da cidade, não ficarão na história como ideais de mudança. E estão certamente longe dos ensinamentos da “força tranquila” que marcou a história da nossa democracia.”
Editorial/ Público

Uma estranha noite portuguesa
O Estado de Direito não se desfez, mas a excepção criada abriu um precedente de força simbólica
Editorial/Público

Quase em simultâneo, na quintafeira à noite, o país assistiu a duas manifestações peculiares. Numa, polícias, guardas-republicanos e outras forças de segurança mostraram que “a lei e a ordem” são válidas para todos menos para quem usa uma farda. Na outra, uma elite anti-Governo — com estrelas do PCP, Bloco de Esquerda, PS e até PSD — fez uma manifestação numa sala de espectáculos, sentada em cadeiras confortáveis, das quais gritou “gatuno! gatuno!” à medida que os nomes do Presidente e do primeiroministro iam sendo repetidos.
Na rua, 10 mil polícias forçaram as grades que marcavam o perímetro de segurança desenhado para proteger a Assembleia da República e empurraram os colegas polícias destacados para garantir o cumprimento da lei. Os polícias “de serviço” acabaram por deixar os polícias à civil subir até à “porta sagrada” do Parlamento, como lhe chamou ontem Assunção Esteves. O Estado de Direito não se desfez na quinta-feira à noite, mas a excepção criada abriu um precedente de enorme força simbólica. A partir de agora, todos os que ali se manifestarem vão exigir o mesmo: uma interpretação liberal, flexível e casuística das regras. As escadarias da Assembleia da República — a casa das leis e da democracia — passaram a ser um lugar onde, às vezes, não se cumpre a lei. O director nacional da PSP fez bem em demitir-se e Passos Coelho em dar um sinal de que o que aconteceu não pode repetir-se.


Na Aula Magna, os olhos estiveram postos nas escadarias da Assembleia. Falou-se de uma quase inevitabilidade de violência por causa da crise, sabendo bem quem o disse que não há tradição de violência em Portugal, nem sinais de que tal esteja a mudar. As palavras de Mário Soares e de Helena Roseta foram aplaudidas, mas, como a polícia, no outro lado da cidade, não ficarão na história como ideais de mudança. E estão certamente longe dos ensinamentos da “força tranquila” que marcou a história da nossa democracia.


A diferença
Por Vasco Pulido Valente
23/11/2013 – in Público

O dr. Mário Soares não percebe, ou não quer perceber, que prevenir contra a violência é ao mesmo tempo um incitamento à violência. E pior do que isso nunca explica em que espécie de violência está a pensar.

Não pensa com certeza nas barricadas de Vítor Hugo ou da revolução de 1848. Não pensa também numa revolta do Exército, que está unido e relativamente resignado. Ou numa insurreição popular como a “Maria da Fonte”. Quando muito, pensa em um ou outro distúrbio na Avenida da Liberdade ou no centro do Porto, com uma quantidade respeitável de pancadaria e algumas montras partidas. Só que essa violência seria em princípio inconsequente e não mudaria nada, excepto a taxa dos juros. E o espectáculo de que o país não gosta e a que não está habituado talvez viesse mesmo a fortalecer o Governo.

Mas quinta-feira, 21, oito corporações policiais (da Judiciária ao SEF) afastaram as barreiras e subiram a escadaria da Assembleia da República sem encontrar resistência. Obviamente os polícias não queriam agredir os polícias; e, se os manifestantes tivessem acabado por entrar na sala de sessões e escavacado meia dúzia de bancadas (o que não é difícil), em que situação ficaria o poder? Ou chamaria o Exército para, como se dizia, "restabelecer a ordem", ou ficaria à mercê do primeiro cidadão que o achasse, como Vasco Lourenço, digno de paulada. De qualquer maneira, daqui em diante as forças de segurança não garantem segurança nenhuma: se não se mexeram contra os colegas para cumprir a lei, porque se incomodariam agora com um pequeno tumulto de civis, que não conhecem e com quem provavelmente simpatizam?

E há mais. Se o Governo e o Presidente da República ficassem paralisados por falta de protecção, quem os substituiria? Não existem nos partidos corpos paramilitares. Uma intervenção externa não é sequer imaginável. Então, o quê? Uma junta de generais, com um título pomposo, que não hesitaria em acabar com a democracia e com o Estado social. A indignação da Aula Magna, como anteontem se exprimiu, leva rapidamente ao desastre; e o desastre, a suceder, não tardaria a liquidar tudo o que é estimável e bom em Portugal. Espanta que o dr. Soares não compreenda isto. E espanta a irresponsabilidade com que o Governo tratou as polícias. Existe uma diferença essencial entre um civil e um homem da GNR ou da PSP: os civis não andam armados. Um facto que aparentemente ainda não entrou na cabeça dos nossos chefes democráticos.

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