sábado, 17 de agosto de 2013

O futuro em rede.

Ronaldo Lemos, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ, participa de painel sobre liberdade de expressão na era digital durante o CBI (Congresso Brasileiro de Internet). Realizado em Brasília, o evento é tem como objetivo debater os desafios do ambiente virtual no país, como a regulamentação do setor, liberdade de expressão, desenvolvimento de novas tecnologias e obstáculos para o investimento em infraestrutura

O futuro em rede


Um no Rio de Janeiro, outro em São Paulo, dois nomes centrais da cultura digital olham para a actual convulsão no Brasil e antecipam o que aí vem: democracia, política, media, cultura
Tudo o que está a acontecer no Brasil já estava lá, a crescer, ignorado, diz Ronaldo Lemos. Jurista, perito em propriedade intelectual, representante do MIT Media Lab, ele é, aos 37 anos, um nome obrigatório sempre que se fala de cultura digital. "Há uma mudança na esfera pública brasileira, provocada por uma mudança de medias", resume. "Antes, você ia até Brasília e os deputados tinham os jornais na mesa e tomavam decisões de acordo com essa pauta [agenda] pública. Com a chegada da Internet, essa outra esfera digital foi sendo progressivamente ignorada. As demandas dos manifestantes já estavam na Internet e, de repente, ao serem totalmente ignoradas, a situação se tornou insustentável."
E isso "muda a relação entre democracia e esfera pública", diz. "A rede passa a ocupar esse lugar da formação de opinião. As pessoas sentem que ali são escutadas, que estão em rede e o Estado é que está desconectado." O que aconteceu no começo de Junho foi que o Estado acordou.
Ronaldo dá um exemplo fresco: "O Estado brasileiro acaba de fazer uma licitação pública para a compra de um sistema de análise de debates em redes sociais." Ou seja? "Se você é ministra, na sua mesa vai ter um clipping das notícias mas também o balanço das discussões na Internet. A dieta de media de uma agência governamental vai ser mais rica."
Que efeito terá isso na democracia? "Um enriquecimento potencial. O sistema é o mesmo, mas orçamentos participativos e consultas populares voltam a fazer parte do debate, e há uma expectativa de que as vozes libertadas pelas tecnologias possam ter um impacto directo na democracia."
A representatividade não será uma questão? "Sim, essas vozes se libertaram por exemplo no Facebook, que não é um canal de igualdade entre as vozes, é filtrado por algoritmos, e muitas vezes grupos conseguem ocupar o canal, como se fossem uma maioria. É uma forma de media totalmente imperfeita quanto a representatividade. Por isso, a tarefa governamental é muito importante para criar canais sem essas distorções das redes sociais."
Como? "Sou um entusiasta de ideias como minipúblico: em territórios delimitados, seleccionar grupos de cidadãos que tenham representatividade estatística e diversidade aleatória. Isso seria um contraponto que equilibraria o discurso desequilibrado da rede social, onde o que se vê é muitas vezes a representação de 50 ou 100 pessoas que se organizam para ocupar aquele canal."
Esta convulsão também traz ao de cima "um descompasso entre a sociedade que se está a organizar em formas horizontais, não hierárquicas, sem líder, e o Estado, com um sistema baseado no modelo de democracia representativa", nota Ronaldo.
"Essa geração mais jovem passa a ter expectativas muito diferentes, o que gera crises de legitimidade, e tensão."
O risco, alerta, não é que a democracia acabe, mas que o sistema político se marginalize, perante jovens com "anseio de velocidade e transformação", que "não tenham a menor vocação para ingressar" nele. "Essa é uma questão que vai gerar instabilidade nos próximos anos."
Reforma política
O que há a fazer? "O primeiro passo é uma reforma do sistema político que o torne mais aberto e permeável. Tribos diferentes estão se organizado e o sistema continua do jeito que está, por exemplo com um financiamento privado de campanhas que admite doações ocultas. Falhas muito graves.
O segundo passo é a transformação das formas de participação para além das eleições, construir oportunidades periódicas." Aí entram os orçamentos participativos, os minipúblicos, pesquisas deliberativas, territórios decidindo como se vai aplicar o orçamento lá." A cidade será o elemento dessa transformação, justamente por ser um território específico. E Ronaldo alerta: "Enquanto isto não acontecer, esses colectivos vão continuar a se digladiar porque não têm forma de participar no sistema político. A situação só se agravará."
Como avalia a reacção dos governantes brasileiros aos protestos? "A resposta inicial foi muito positiva. O Congresso começou a votar leis paradas há muitos anos, derrubou a PEC 37 [Proposta de Emenda Constitucional, que retirava poderes ao Ministério Público, dando à polícia o monopólio da investigação]. Precisou de milhões na rua, mas durante um mês e meio demonstrou que podia funcionar se quisesse. Tanto da parte da Presidente [Dilma Rousseff] como do Congresso, surgiu um rol de propostas.
Mas depois essa energia se dissipou." É "nesse momento que estamos, vendo que não há um progresso na esfera política", diz.
"Há uma preocupação do Governo com as redes sociais, mas para as monitorar, não para fazer essa transformação. Devia ter sido criado um canal permanente, em vez disso houve um relâmpago. O problema é que enquanto o Estado está imóvel, perplexo, a sociedade está em alta transformação." Mais uma vez, "isso vai criar tensões".
No Rio, por exemplo, "nunca houve uma vontade tão grande que as eleições estivessem mais próximas". O governador Sérgio Cabral tornou-se o maior alvo local de protestos e só em Outubro de 2014 se votará para um novo governo estadual.
"A situação é muito tensa, numa cidade que sempre sofreu questões de segurança pública à flor da pele. Existe um desejo grande de transformação, as pessoas sentem que a eleição está longe de mais e isso leva a uma vontade maior de participar."
Ronaldo cita a proposta de teleférico na favela da Rocinha. "Não foi feita nenhuma consulta com validade estatística sobre se as pessoas queriam o teleférico ou escolas ou saúde. Aí as pessoas saíram à rua a dizer que não queriam o teleférico e queriam ser ouvidas."
Amadurecimento
Se Ronaldo Lemos mora no Rio e trabalha no sector privado, Rodrigo Savazoni mora em São Paulo e trabalha dentro do poder público. Aos 33 anos, é chefe de gabinete do secretário municipal de cultura de São Paulo, Juca Ferreira (o homem que foi braço direito e sucessor de Gilberto Gil no Ministério da Cultura do Governo Lula). Savazoni co-organizou o livro de ensaios Cultura Digital, co-fundou a Casa de Cultura Digital, foi parceiro de colectivos como o Fora do Eixo (FdE). É um entusiasta dos avanços sociais do Governo Lula.
"Essas manifestações fortalecidas pela Internet são a consequência de um amadurecimento da democracia brasileira", resume, ao telefone desde São Paulo. "Houve um processo de melhorias que impactou muito as juventudes urbanas. Desse choque você tem a emergência de novos actores, que são o caldo das manifestações. Portanto, elas são um aperfeiçoamento da democracia. Talvez o ciclo pós-ditadura tenha se encerrado e agora estejamos enfrentando um novo projecto de nação, de médio-longo prazo." Isto embate nos modelos organizados de política, "evidencia a diferença entre os meios e os propósitos dessa juventude urbana e os políticos tradicionais".
Savazoni lembra que das Primaveras Árabes à Turquia ou aos Estados Unidos, "a primeira reacção dos governos quanto às manifestações tem sido o exercício do monopólio da força", o que não aconteceu com o Governo de Dilma Rousseff. "A Presidente entendeu a importância, foi à televisão apresentar propostas, incluindo a reforma do sistema político."
Enquanto "em São Paulo e no Rio as polícias eram colocadas como instrumentos de repressão, o que foi um factor de amplificação das manifestações", lembra. "Não vou entrar na questão de saber se foi efectivo, mas o Governo federal não ignorou nem reprimiu."
Golpes
Que fazer da democracia agora? Savazoni evoca o Brasil de 1964, quando os militares tomaram o poder: "Havia ebulição político-cultural, ciclo de crescimento e internacionalização, mobilização da juventude, e vem a interrupção por meio de um golpe. A tese do golpismo apareceu na esquerda agora, de que nessas manifestações haveria um germe autoritário, de que poderiam ser o cavalo de tróia de uma direita golpista. Acho uma tese delirante."
Mas também não partilha "uma análise esfuziante, como se este fosse um momento único e definitivo, um processo revolucionário radical". O que é então? "Um levante popular generalizado, ocasionado pela consolidação da democracia, para a acelerar."
Savazoni concorda que "o modelo representativo actual não atende os anseios da população nem a classe política", começando por isto: "Você força um tipo de coligação muito pouco transparente para a governabilidade que confunde a todos, incluindo os próprios agentes [é esse o modelo da coligação presidencial brasileira, que inclui um leque alargado de partidos políticos]."
Mas não acha que as ruas estejam contra a democracia. "Grande parte de quem foi para a rua eram pessoas que estavam agindo dentro da democracia pela primeira vez. E há uma disputa nas ruas, um grande conjunto de agentes não organizados, não politizados, participando dos processos, dizendo que a política é parte da vida deles."
Viu isso germinar quando trabalhava na parte online da campanha de Lula, em 2002. "Depois, com [o Ministério da Cultura de] Gil-Juca, o Estado tentou abrir-se a esse processo, actualizando o desafio da esquerda." Era "o frescor das lutas sessentistas, tropicalistas, dentro do quadro de um projecto de superação da desigualdade trazido pelo Lula", diz. "Isso estimulou muitas forças. Esse conjunto de valores está agora nas ruas: desenvolvimento com diversidade, pacto indígena e racial, o papel central da cultura no processo capitalista contemporâneo, a construção de redes."
Lembra o desafio de Gil em 2004: "Uma revolução cultural, não a de Mao, em que os artistas se transformem em lavradores, mas em que todo o lavrador, todo o brasileiro possa fazer valer o seu agir cultural. Essa utopia é fascinante. E depois da virada de Lula para Dilma perdeu força."
Quando Ana de Holanda ficou com a pasta da Cultura, até ser substituída por Marta Suplicy. A nova ministra, diz Savazoni, "não faz oposição sistemática ao que a precedeu, como Ana de Holanda, mas não vejo o mesmo desafio, ela tem uma abordagem mais tradicional, não é uma militante cultural".
Um dos protagonistas que emergiram da convulsão e na convulsão foi o muito discutido Pablo Capilé, do Fora do Eixo (ver reportagens 2/3 desta série). "Pablo é uma grande liderança, com capacidade de articulação, e ele vive para isso", diz Savazoni, seu amigo.
A controvérsia não o impressiona. "O lábio do Pablo é o dedo mindinho do Lula", diz, evocando os dois handicaps físicos que os marcam. "Vejo que há uma disposição de desconforto em relação à figura do Pablo. Talvez a emergência de alguém com tanta força faça surgir essa virulência. As pessoas não querem esclarecimento, querem linchamento."
Na última entrevista que deu, Capilé disse que todas estas redes que vieram à tona vão ser decisivas no ano que vem, que "a tomada de Junho vai desembocar em 2014 de forma forte". É ano de eleições estaduais, presidenciais e de Copa do Mundo.

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