segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Pequena Dorothy e o Grande Feiticeiro Por António Sérgio Rosa de Carvalho Terça Feira 19/2/2002




A Pequena Dorothy e o Grande Feiticeiro
Por António Sérgio Rosa de Carvalho
Terça Feira 19/2/2002

Todos conhecemos o momento revelador no famoso "Great Wizard of Oz", em que a pequena Dorothy e o conhecido elenco de acompanhantes - ilustrador de diversas inseguranças e buscas humanas - são confrontados com o facto de que, afinal , o "Great Wizard" não é mais que um comum dos mortais , escondendo as suas próprias inseguranças na manipulação, através do mito.A mensagem é clara : sê autónomo, conhece-te e confia em ti próprio. Tal como uma conhecida cançonetista americana apregoa: em cada um de nós, no mais profundo do nosso íntimo, reside um herói .E se a pequena Dorothy, fascinada por sua vez pela revelação do poder reencontrado, lhe toma o gosto? Depois de, no "Senhor dos Anéis", termos visto a mais angélica das princesas dos Elfos quase sucumbir, tememos o pior. Já Platão numa autocrítica, nos avisava retoricamente: e quem controla os reis filósofos ? Para alcançar um equilíbrio justo de "vontades" , a sociedade delegou a salvaguarda dos valores de justiça a Instituições que têm como missão legislar, punir os infractores, estimular as virtudes.Passemos agora a um caso concreto, a destruição total de um interior classificado e referido num inventário camarário: a antiga Casa Vianna, na Rua da Prata, 61/63, em Lisboa.Já sabíamos que nos tínhamos exercitado na autodestruição e no exorcismo histórico, empenhando-nos supreendentemente, num período onde a urgência de reequilíbrio entre o global e o especifico é reconhecido por todos, em destruir sistematicamente todas as nossas referências de identidade. O que surpreende também (nós somos civilizados, não nos indignamos) é que a radical obra de destruição deste templo das rotas do café e do chá tomou lugar sem licença, informando o Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar) que o projecto aqui apresentado se referia somente "a obras de interiores, como a instalação de sanitários, pequenas reformulações morfológicas sem implicações quanto à caracterização do miolo", que "previam a recuperação da fachada".Moral da história : se alguém alérgico a contorcionismos decorativos neo-rococó e adepto das harmonias abstractas dos horizontes minimalistas pedir uma licença para alterar a preciosa casa de banho das senhoras na Casa do Alentejo (conhecem ?), isso poderá levar a "pequenas reformulações morfológicas sem implicações" - ou seja, à destruição de todos os notáveis interiores deste antigo Clube Social (Majestic), que sobreviveu, por milagre, na sua glória ecléctica "degradé", entre vestíbulos neo-árabes e "salons" II Empire.Agora que "novos ventos" sopram, e novos objectivos são definidos para a cidade de Lisboa, chegou o momento de definir e institucionalizar juridicamente uma legislação de salvaguarda de interiores. Neste momento em que tanto se fala de "descentralização" , e em que a câmara se propõe em desenvolver um projecto global de recuperação e restauro para as zonas históricas de Lisboa - que forçosamente terá que ser precedido por um exaustivo trabalho de inventariação, edifício a edifício, nos exteriores e interiores, formulando uma rigorosa filosofia de intervenção - chegou talvez o momento da autarquia tomar a iniciativa e "estimular" o Ippar, "dinamizando" o acordo de cavalheiros existente .A melhor estratégia para, no caso da Baixa, garantir a salvaguarda de todos os notáveis interiores históricos - detentores de grande potencial habitacional - desenvolvidos ao longo do séc. XIX , é classificar a "gaiola". Se não for possível no património mundial, então que seja no nacional, que nós não somos parolos... ou seremos ?Debruçemo-nos sobre o já famoso "casus" (eu não me conformo) Ramiro Leão.Com objectivos culturais, dignos da mais iluminada "gauche caviar", a anterior autarquia cedeu, por quantia apetecível, o ENTÃO intacto Ramiro Leão (que seria, ENTÃO, um dos primeiros elementos da ainda não existente lista de monumentos nacionais de arquitectura de interiores) ao famoso sr. Benetton.Não me cabe a mim julgar o sr. Benetton, que se tem mostrado nas suas campanhas publicitárias hábil "manipulador de mitos". Ele está no seu papel de "Great Wizard ", e nós no nosso, de "Pequenas Dorothys" . Daí a necessidade que alguém nos proteja - a tal instituição. O sr. Benetton faz apenas e só aquilo que o deixam fazer. Se a legislação que protege os interiores em Bolonha, Veneza ou Florença é rigorosa...Agora temos que relativizar a presença nocturna permanente de uma fachada LEGOlizada (em vez de legalizada), que domina "electricamente" a envolvente, transformando, numa inversão de valores, o Paris em Lisboa e o David e David numa excentricidade.
Historiador de Arquitectura.

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