segunda-feira, 2 de julho de 2012

Algumas considerações alfacinhas Por António Sérgio Rosa de Carvalho* Domingo 4/11/2001 in Público



Algumas considerações alfacinhas
Por António Sérgio Rosa de Carvalho*
Domingo 4/11/2001 in Público
Em Lisboa, apesar das promessas de vários autarcas, a batalha para a preservação do património do séc. XIX , o património das avenidas e dos nossos "boulevards" está prática e definitivamente perdida. Por todo o lado os prédios de oitocentos que ainda restam são vistos ao abandono, com as janelas dos andares superiores abertas, afim de que o processo de deterioração se acelere. Apesar de tudo o que se tem dito, as alterações e demolições continuam, com a perda de todos os interiores, que têm grande potencial habitacional. Basta olhar para a Fontes Pereira de Melo, onde tudo o que resta está à espera de ser demolido.Há pouco tempo mais um edifício foi demolido, alguns números abaixo do Diário de Notícias, na Avenida da Liberdade, sempre com a falsa atitude de, depois da demolição total do notável interior, manter a fachada, numa mentira patrimonial a que se chamará mais tarde recuperação.Toda a Baixa Pombalina, na sua unidade arquitectónica, surge como um conjunto urbano coerente na perspectiva patrimonial, apresentando um potencial habitacional único e não aproveitado, e constituindo, com algumas "bolsas" de bairros históricos, o último reduto de resistência à destruição sistemática da cidade. A Baixa apresenta todas as verdadeiras características de uma verdadeira cidade, com praças emblemáticas pontuadas com monumentos referência de identidade local e nacional e constituindo estímulos de virtudes cívicas e comunitárias.Todo o período de oitocentos preencheu as ruas da Baixa de um comércio tradicional com interiores de grande valor patrimonial que é urgente classificar, para preservar, e que têm vindo a desaparecer progressivamente, por mudança de hábitos quotidianos ou por uma falta de consciência que se torna criminosa .Ainda há pouco tempo, sem que alguém notasse, na Rua da Prata, um dos últimos redutos da venda do chá e do café, a Casa Viana , foi totalmente destruída para aí instalar um vulgar estabelecimento de cafés Delta. Para um futuro repovoamento da Baixa, para a garantia de uma vida de bairro e de um quotidiano de vida em comunidade, o comércio tradicional é indispensável.A Baixa precisa de um levantamento sistemático, capaz de formular um Plano Global de Intervenção e Recuperação Unificado, acompanhado de um Plano de Pormenor detalhado que defina os princípios de intervenção a todos os níveis e em todas as áreas.Nestas últimas tão anunciadas intervenções não é isso que está a acontecer. Todo o centro histórico, com praças tão importantes como o Rossio ou a Praça da Figueira, está a sofrer intervenções de autorias diferentes, com filosofias de intervenção distintas.A desagregação caótica e destruidora já chegou à fronteira imediata da Baixa. À porta das traseiras da Baixa encontra-se o maior desafio de recuperação como espaço público: o Martim Moniz. Depois de ter sofrido uma demolição radical nos anos 50 sofreu ainda duas intervenções desastrosas através da construção dos centros comerciais... desastre culminado pela confirmação e extensão de um grande erro arquitectónico e urbanístico, o Hotel Mundial, que só tem servido como barreira natural para impedir que o papel desagregador do Martim Moniz penetre pela Baixa através da Praça da Figueira.Na Praça da Figueira impunha-se uma composição clássica, seguindo o arquétipo pombalino do Largo de S. Paulo, centralizado , e assumindo assim sem complexos o valor do monumento equestre de Leopoldo de Almeida na sua posição central.Este principio simétrico - contrário ao principio assimétrico utilizado por Daciano Costa, que pretende fazer também vários "abrilhantamentos " tipo mobiliário urbano de "designer"- artista - convidado - iria transformar a Praça da Figueira num ponto de resistência à penetração ou à "invasão" do caos e decomposição do Martim Moniz na Praça da Figueira .Como tudo foi preparado em grande secretismo e não nos perguntaram nada, assim como no caso das "baratas viscosas" que populam a Praça do Município - transformando, numa inversão de valores perversa , o pelourinho numa excentricidade - ou sobre o famoso monumento ao 25 de Abril no alto do Parque Eduardo VII -transformando o terraço num local que parece que foi alvo de um ataque terrorista -, a Praça da Figueira vai ser transformada num local onde a decomposição e a desagregação se irão tornar vizinhas imediatas do Rossio, em nome do "frisson" assimétrico de um "designer" de mobiliário transformado em urbanista .Quanto ao Rossio , a intervenção é mais correcta justamente porque assume, numa atitude de bom senso, o legado patrimonial da memória histórica , recriando a placa central em pavimento tradicional e dando prioridade às áreas pedonais , disciplinando o trânsito automóvel numa antevisão daquilo que inevitavelmente se vai tornar na atitude global futura para a cidade, seja qual for o autarca.Embora a "lavagem à cara" das fachadas seja sempre agradável e efectiva no aspecto visual, a pressa eleitoral da necessidade de "apresentar obra" deixou-nos a nossa praça nobre com as coberturas pejadas de abarracamentos em betão e tubagens técnicas que iríamos classificar de surrealistas se não conhecemos o "síndroma Brandoa" que domina misteriosamente este país, que se empenha , no presente, em se auto-destruir. Aliás este fenómeno é ilustrativo de uma "doença de pele" que domina todo o centro histórico, invadido nas suas fachadas por grupos de caixotes de ar condicionado pendurados , como um "acne" contagiante. Já agora convém também reconhecer , a correcção da sóbria intervenção no Largo de Camões.Na reabilitação da Baixa é recomendável um grande rigor histórico, além de uma definição rigorosa de materiais , texturas , paleta de cores e elementos históricos.Os investimentos só poderão ser compensados e justificados por uma qualificação social que transporte em si a garantia de grau de consciência histórica.Desde 1978 , a Baixa está classificada como Imóvel de Interesse Público (!!!)... uma das maiores excentricidades para um conjunto urbano desta importância e envergadura . É preciso desenvolver legislação para classificá-la na perspectiva de conjunto urbano como Monumento Nacional, protegendo as suas características únicas.Uma última sugestão: ao classificar a "gaiola", a tal estrutura anti-sísmica que faz a diferença no estilo pombalino, como Património Mundial ir-se-ia garantir a conservação de todos os interiores pombalinos detentores de um potencial habitacional único e insubstituível.*Historiador de Arquitectura

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