sexta-feira, 30 de março de 2012

Chelas: o que era novo e moderno ignorou as pessoas.04/12/2011.



A urbanização social das Amendoeiras faz parte dos "bairros-ilha" de Chelas

Com a edificação do Hospital Oriental de Lisboa em Chelas quer-se promover a coesão social no território, que foi um falhanço urbanístico. Pôr gente nas ruas que foram feitas para carros pode ser tarefa impossível

Por Carlos Filipe in Público

Diz-se que a culpa é da Carta de Atenas e que dos seus princípios gerais enferma ainda o urbanismo de Chelas, um território feito de ilhas, onde as relações de vizinhança são difíceis. Quase 50 anos depois do plano que o definiu, um outro está em elaboração, com o qual se pretende dar-lhe coesão e diversidade funcional. Mas será que a construção de um grande hospital ajudará a corrigir tantos erros grosseiros na concepção de cidade?

Especialistas de arquitectura e urbanismo ouvidos pelo PÚBLICO apontam os erros e o futuro da missão: se para um é impossível, para outro ainda há remédio, mas a cura será longa.

A Carta de Atenas foi um documento de compromisso, redigido em 1933 por arquitectos e urbanistas internacionais, entre os quais se destaca Le Corbusier. Surgiu após a conclusão do Congresso de Arquitectos e Técnicos de Monumentos Históricos, realizado na capital grega, dois anos antes. Aqueles princípios serviram de guia urbanístico e como inspiração para a arquitectura contemporânea - seria suprimido o conhecido traçado das cidades, então com ruas e quadras, para se implantar um zoneamento selectivo, uma divisão de áreas funcionais: habitação, trabalho, circulação, lazer.
António Sérgio Rosa de Carvalho, historiador de arquitectura, enfatiza no que diz ser o fulcro da questão: "Abdica-se de dois elementos fundamentais para a constituição de uma cidade: a rua-corredor, elemento integrador e das vivências do quotidiano (residencial/comercial/contactar/movimentar/trabalhar) e a praça-fórum, mais dirigida à vivência institucionalizada (mercado/reuniões/edifícios públicos/monumentos."

Pensada e não acabada

A urbanização de Chelas teve as suas origens no início dos anos de 1960 após estudos do então chamado Gabinete Técnico de Habitação da Câmara de Lisboa. Estimava-se então que estivesse concluída em 2000. Foi pensada para acolher operários e trabalhadores da função pública, como aconteceu com Alvalade e Olivais, mas o plano não correu bem, fosse pela dificuldade de aquisição ou expropriação de terrenos, fosse pela agitação social e o fenómeno das ocupações em 1975. E ainda eclodiu a necessidade de alojar cidadãos oriundos das ex-colónias, e outros pelo início da erradicação dos bairros de barracas. Curraleira, em 2001, foi o último exemplo. A zona polarizou-se em bairros-ilha, sendo os principais Amendoeiras/Olival, Armador, Condado, Flamenga e Lóios.
Com o advento da Expo-98, o território fragmentou-se ainda mais com a multiplicação das vias rápidas de acesso ao Parque das Nações. Cortaram-se as ligações e os habitantes ficaram mais afastados das zonas de comércio e serviços. O cenário verde e idílico que a orografia e o sistema de vales propiciava ficou comprometido. "Criaram-se grandes distâncias a percorrer, com as conhecidas dependências de transporte individual e colectivo, com consequências para a qualidade de vida e ambiental", nota o historiador.
António Baptista Coelho, do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), assume-se um "passeante inveterado que em Chelas não encontra o seu sítio - provavelmente poucas pessoas o encontrarão." "É preciso ter a ideia de que ali se tentou fazer novo e fazer melhor, mas talvez já tivesse havido tempo de se perceber que não resultou, mas que é um sítio fantástico, com exposição solar e vistas privilegiadas", salienta o arquitecto, que lamenta tal exercício urbanístico, quando comparado com outro, anterior no tempo: "Uma das malhas urbanas mais humanizadas e naturalizadas de Lisboa e de Portugal é a de Olivais-Norte/Encarnação, onde há um percurso agradável no verde, acompanhado por vistas de janelas, uma zona pedonal que não inibe uma funcionalidade adequada dos veículos e que se integra na perfeição com actividades comerciais e cívicas, bem servido de transportes, e tudo bem desenhado, o que é fundamental."
O também editor da revista/blogue Infohabitar acrescenta: "Foram edifícios e espaços públicos feitos nos anos 60, mas com a sabedoria da relação com o movimento aparente do Sol. O que ali aconteceu foi ter-se feito cidade com habitação. Ainda hoje, em Chelas, estas condições não existem, pois foi feita muito para o automóvel, quando hoje as cidades estão a ser recuperadas para a pessoa, para o peão."
Para Rosa de Carvalho, "a causa do desastre de Chelas, como cidade-dormitório, radica na raiz da sua concepção errada, constituindo um laboratório de experiências sociais onde as principais vítimas são as pessoas." O historiador vai mais longe: "Este tipo de falhanços urbanísticos já começaram a ser demolidos pela Europa."

Cidade em Alvalade

Dos Olivais também aponta ter sido um bom exemplo, mas de Alvalade [do arquitecto Faria da Costa] Rosa de Carvalho afiança ter sido tão bom ou melhor, destacando a Av. da Igreja, "uma verdadeira cidade": "Tem qualidades multifuncionais, humanas, resultantes de uma escala, composição urbana (boa arquitectura em tipologia e materiais/máximo de quatro andares)".
Por que razão falhou Chelas? "Talvez porque na altura haveria uma ideia de modernidade, que tinha que ver com aspectos até políticos, talvez porque não se conseguiu ter adequado discernimento relativamente a conjuntos ali ao lado bem conseguidos em termos habitacionais e urbanos - Alvalade, ainda um exemplo de escala e humanização, Olivais Norte, onde se fizeram pela primeira vez em Portugal, os edifícios no meio do verde e dos jardins, e certas zonas de Olivais Sul", explica o investigador do LNEC.
"O zonamento monofuncional de Chelas, de arquitectura baseada em modelos (escala-tipologias-materiais) errados, exercendo um efeito perverso no campo sociológico, foi ainda agravado pela falta de contacto com o exterior até aos anos 90, transformando as suas cinco ilhas isoladas num baldio", esclarece, por seu lado, o historiador.
Mas o plano com o hospital pode ser remédio? "A única tentativa que pode ser feita (missão quase impossível) é tratar cada uma das zonas independentemente, e desenvolver em cada uma delas, uma aproximação a uma pequena cidade - ruas, comércio, praças, centros cívicos, pontos de referência e identidade", diz Rosa de Carvalho.
António Baptista Coelho adverte que há em Chelas "excelentes peças de arquitectura habitacional". E cita o arquitecto Manuel Taínha, na revista Arquitectura e Vida, de Março 2000:" É mais do que tempo para regenerar, reabilitar, reconverter, preencher e requalificar Chelas, e, quem sabe, o tempo que passou nos permita fazer ali uma intervenção tão sensível e adequada, como estruturalmente reabilitadora da realidade que ali se vive."
A integração de equipamentos hospitalares em Chelas, admite, só "poderá ajudar a "desenclavar" o bairro (que hoje ainda o não é), mas é evidente que o que se foi fazendo mal ao longo de decénios não será remediado em meia dúzia de anos". No entanto, conclui, "é possível privilegiar e é vital calendarizar medidas e opções que atribuam a Chelas um sentido de vivência urbana e humana".

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